A Associação Vimaranense de Ecologia (AVE) denuncia a construção de duas moradias sobre um caminho público, na antiga Quinta do Mosteiro, na freguesia da Costa, em Guimarães. Os ambientalistas sustentam a denúncia numa planta de loteamento, aprovado pela Câmara, que apresentava o referido caminho e uma zona de terreno de domínio público.
O alvará do primeiro loteamento naquele local foi emitido em novembro de 1993, com o número 57/92. Na planta deste loteamento, está desenhado um caminho público que acompanha a estrada de Santa Marinha da Costa e inflete para a rua João de Oliveira Salgado, na zona onde agora estão a construir. Além do caminho, da planta, consultada por O MINHO, consta também uma área de terreno de domínio público. Na legenda da planta do loteamento de 57/92, o caminho público está assinalado com a letra “c” e o terreno de domínio público com a letra “d”.
“Este loteamento foi aprovado pela Câmara Municipal de Guimarães com base nestes documentos. Os técnicos do Município estiveram no terreno e deviam fiscalizar as obras a partir destas plantas precedentes”, afirma Jónatas Couto, presidente da AVE. Contudo, em 2001, foi apresentado um novo pedido de loteamento, para o terreno contíguo ao 57/92. Segundo informação da Câmara Municipal, neste pedido, foi “apresentada inexistência de qualquer caminho público”.
A AVE vê a formulação desta resposta do Município com apreensão. “A Câmara diz que foi ‘apresentada inexistência’, o que quer dizer que a empresa responsável pelo loteamento não apresentou uma planta em que constasse o caminho, porém, o Município conhecia previamente a existência, não só do caminho público, como de uma parcela de terreno arborizado de domínio público. De forma que, a Câmara tinha a obrigação de reconhecer que havia um erro nas plantas que estavam a ser apresentadas”, afirma o presidente da AVE.
Regime de licenciamento simplificado não isenta Câmara de fiscalizar
A AVE lembra que o regime jurídico do licenciamento foi simplificado com o Decreto-Lei nº 555, de 16 de dezembro de 1999, mas que isso não diminui a responsabilidade de quem fiscaliza. “Se é certo que, por via de um aumento da responsabilidade dos particulares, é possível diminuir a intensidade do controlo administrativo a que atualmente se sujeita a realização de certas operações urbanísticas, designadamente no que respeita ao respetivo controlo prévio, isso não pode nem deve significar menor responsabilidade da Administração”, afirma Jónatas Couto, citando o diploma. “Em 1993, quando não existia este regime simplificado, a Câmara fiscalizou e verificou, de acordo com a planta do loteamento 57/92, a existência de um caminho e uma parcela de terreno arborizado do domínio público. A Câmara não pode aceitar como boas as declarações que são feitas pelas partes interessadas, como a lei estabelece, tem de fiscalizar”, aponta.
O certo é que, em julho de 2004, a Câmara Municipal emitiu o alvará de licenciamento 17/04, cuja planta não referencia nem o caminho, nem o terreno de domínio público. O Município afirma que foi emitido “após a discussão pública devida”. Mas a AVE contrapõe que “esta discussão pública é um ato formal, as pessoas que potencialmente podem sair lesadas não se pronunciam porque nem têm conhecimento que está a decorrer”.
A AVE vai mais longe: “A Câmara não tinha que colocar sob discussão pública a existência de um caminho e de terrenos de domínio público que já tinha reconhecido previamente”. Para a associação, “trata-se, no mínimo, de uma grande negligência”.
“Não havia nenhuma indicação de que era privado, portanto, assumia que era público”
Vítor Matos, o presidente da Junta de Freguesia da Costa, admite que não tem um conhecimento do terreno que lhe permita afirmar que o caminho era publico. Já António Pereira, morador na zona, desde 2010, reconhece que o caminho não só existia como o usava frequentemente para aceder à ecopista com o filho. “Não havia nenhuma indicação de que era privado, portanto, assumia que era público”, alega.
A AVE chama a atenção para o facto de a empresa que requereu os dois loteamentos ser a mesma. “É a mesma empresa que faz o requerimento dos dois loteamentos, a António Vaz & Ribeiro. Em 1993, admite a existência do caminho e do terreno de domínio público, caso contrário não constava nas plantas desenhadas pelo seu arquiteto. Em 2004, a mesma empresa já não ‘apresenta’ o caminho”, refere o presidente da AVE.
A António Vaz & Ribeiro afirma que, “no terreno em questão, não existia nenhum caminho público e/ou parcela de terreno pública, pois como ainda hoje é observável, o terreno encontra-se delimitado com um muro em perpianho granítico, que até aos tempos de hoje, define a fronteira entre o caminho público – rua Santa Marinha da Costa – e os lotes de terreno resultantes do alvará 17/04, neste caso Lote 1 e Lote 2”. Todavia, a empresa não explica como é que na planta do loteamento anterior (57/92), também pedido por ela, o caminho e o terreno de domínio público aparecem claramente assinalados. A Vaz & Ribeiro refere que, no loteamento de 2004, foi cedida ao domínio público “uma área com aproximadamente 3 mil metros quadrados para a circular urbana nascente, localizada a norte do terreno, 11.568 metros quadrados para espaços verdes… para valorização do espaço público comum, onde se definem novos acessos e vias pedonais que permitem um cómodo e adequado uso por parte da população”. Porém, a circular urbana não avançou e no corredor onde estava prevista a sua construção está hoje a ecopista, e alguns dos referidos acessos, como vias de passagem elevadas para peões, nunca foram construídos.
Para a AVE, o caminho público que permitia vir da zona do Mosteiro de Santa Marinha, quase em linha reta, até a rotunda do Campeão Português, ganha nova importância com a construção da ecopista. “Este caminho permitiria um acesso da pista a uma zona central da cidade, evitando as curvas da estrada da Costa. Foi com base neste princípio da facilitação do acesso e na existência ali de um caminho que, até começarem estas obras, ainda era usado pelos moradores, que fizemos uma proposta à Câmara para a requalificação desta via”, esclarece o presidente da AVE.
Os ecologistas foram surpreendidos pelas obras de construção de moradias, levadas a cabo pela Zegnea, uma empresa do neto do proprietário da António Vaz & Ribeiro. “O grupo Zegnea adquiriu um terreno à António Vaz & Ribeiro, a promotora inicial de todos este empreendimento. O terreno foi comprado ao abrigo de um alvará de construção, o 17/04, completamente aprovado, consolidado, com peças escritas, desenhadas, cujo projeto foi feito por uma empresa creditada no mercado, a Pitágoras, as obras e infraestruturas foram feitas por outra empresa cotada no mercado, a M. Couto Alves. Não havia nenhuma situação que nos pudesse suscitar fosse que dúvida fosse, sobre a capacidade construtiva do terreno”, alega Hugo Lobo, administrador grupo Zegnea. “Não me cabe a mim, enquanto administrador do grupo Zegnea ir ver cadastros de terrenos”, acrescenta. Relativamente ao alvará 57/92, Hugo Lobo afirma desconhecê-lo e recorda que nessa época tinha 12 anos.
A AVE fez uma denúncia na Câmara Municipal, em junho de 2021. Em julho, a fiscalização camarária verificou que “as obras decorrem conforme o processo de loteamento e comunicação prévia”. Nessa altura, o Município determinou o embargo de uma parte da obra, por falta de licença, mas não das moradias que, de acordo com a planta do alvará de 1993, estão a ser construídas em domínio público.
Jónatas Couto contesta a ação da Câmara: “Afirmam que a obra está de acordo com o alvará 17/04, o problema é que a comunicação prévia assenta num alvará que estará ferido de irregularidades, uma vez que contraria o alvará mais antigo. Mais, a comunicação é feita pela mesma parte interessada nos loteamentos”. O presidente da Ave sublinha que nos contactos que manteve com o Município, “inclusivamente numa reunião com o arquiteto Filipe Fontes, ninguém foi capaz de explicar como é que o caminho público arborizado desaparece entre o alvará de 1993 e o alvará de 2004”.
O deputado municipal da CDU, Torcato Ribeiro, na reunião da Assembleia Municipal de 30 de dezembro de 2021, alertou para ter sido feita uma denúncia relativa “à parte esquerda do lote, duas habitações geminadas, que estava sob um caminho público. Feita a denúncia, a Polícia Municipal interveio, mas o que o que é certo é que a identificação da fiscalização foram os dois lotes do lado direito que não tinham nada que ver com o caminho público. Isso criou condições para que a obra continuasse a andar.”