O que faz um jornalista de Braga, em Astana, capital do Cazaquistão?

Crónica de Luís Moreira

Crónica de Luis Moreira
Jornalista

“Quem quer que viaje sem um guia precisa de duzentos anos para uma viagem de dois dias” (Rumi).

O que faz um jornalista de Braga, por estes dias, em Astana, capital do Cazaquistão? É simples, ser-se de província, minhoto, não é ser-se provinciano. Vim cobrir, a convite da Embaixada do maior país da Ásia Central, as eleições presidenciais que decorrem este domingo e a que concorrem cinco candidatos. Um escrutínio que tem uma singularidade: numa era em que a democracia liberal é posta em causa um pouco por todo o globo, havendo muitos que a querem mitigar ou mesmo derrubar, este país enorme, de 2.724.900 quilómetros quadrados, (o nono maior país do mundo) encetou o caminho inverso: introduziu uma série de reformas democráticas que vão na direção certa, a da implementação de uma democracia parlamentar e de um Estado de Direito.
De resto, o pioneiro inglês da moderna geopolítica Sir Halford Mackinder (1861/1847) considerava a Ásia Central “o centro do mundo”, dizendo que quem a dominasse mandava no globo. Isto por ser uma zona sem acesso a nenhum oceano, logo difícil de conquistar.
Mas que importância histórica tem o Cazaquistão? Em primeiro lugar foi aqui que se domesticou, há milhares de anos, o cavalo e o camelo, o que é considerado um grande salto na evolução histórica. Estes dois animais, diz o historiador Karl E. Mayer no seu livro «O pó do império», foram para eles “o que a caravela foi para os europeus na era das explorações e da conquista”, o que lhes permitiu invadir a Europa e a China, nos tempos do chefe mongol Gengis Khan, e dos Citas sobre os quais Heródoto escreveu: “o seu país é o lombo do cavalo”. Este animal existe aqui aos milhões, sendo criado para deslocação, recreação, trabalho agrícola e gastronomia, pois são presença constante os pratos com a sua carne, nas casas e restaurantes dos cazaques. “A carne é boa e tem menos colesterol do que a de vaca ou de porco”, dizem, mas, neste último caso, o porco é algo que quase não existe, dado que o Cazaquistão é de maioria muçulmana.

Calças inventadas na Ásia Central

ExpoAstana. Foto: Luís Moreira

O cavalo, algo que há 70 anos ainda se via em muitas aldeias portuguesas, deu origem a uma mudança na forma de vestir em todo o globo: foi nesta zona que se inventaram as calças, isto porque, há mil anos atrás os seus povos usavam uma espécie de vestido com saia, o que, para andar a cavalo, não dava jeito nenhum: nasceram, então, as calças e os cintos, as fivelas e os arreios, sendo certo que deram origem a algo que é hoje parte do nosso dia a dia. São, de resto, raras as mulheres que, aqui em Astana usam roupas tradicionais, e muito menos os lenços na cabeça ou a cara tapada, como ainda sucede em países da zona, um dos quais, o mais paradigmático, pela aberração no tratamento das mulheres, é o Afeganistão.
Já agora, e a propósito do têxtil, importa lembrar que a Embaixada Cazaque criou um Consulado honorário em Guimarães, que é gerido pelo Consul e empresário Gil Vieira, que reside em Braga. O objetivo é o de atrair investimento português, para diversificar a economia, muito dependente dos hidrocarbonetos, mas também dos minerais raros e da agricultura e pesca, a partir de lagos. O Cazaquistão exporta muito para a UE, 40 por cento do seu comércio externo, e tem boas relações com a União, o que é mais um motivo para reformas democráticas.

Neve e temperaturas negativas

Foto: Luís Moreira

As eleições presidenciais vão decorrer debaixo de neve e de temperaturas negativas, (menos oito graus em Astana mas mais de menos 20 noutras regiões). Votam 11,5 milhões dos seus quase 20 milhões de cidadãos, o que demonstra que se trata de um país muito jovem. A cidade, de 1,2 milhões de pessoas, é extensa, toda plana, com avenidas a perder de vista e edifícios, tipo arranha-céu,de arquitetura moderna e linhas inspiradas na milenar cultura local. O espaço é tanto que a cidade não tem parcómetros, nem as respetivas multas… O povo é ativo, acolhedor e simpático, mas sem subserviência para com o estrangeiro.
Quando se fala em Portugal, os cazaques responde com um sorriso: “Portugal? Futebol! Ronaldo!, e dizem gostar de ver a nossa seleção.
Entre os 55 jornalistas estrangeiros que cobrem as eleições, e que vão do Paquistão, da Índia, da Mongólia aos países da zona, sem esquecer os europeus, encontrei um, suíço, que tinha estado em Braga este ano, aquando do Campeonato Europeu de Veteranos, isto porque o pai é veterano em termos de corrida. Gostou de Braga e aconselha a visita à nossa região.

Reformas e eleições

Comissão eleitoral. Foto: Luís Moreira

No que toca ao sistema político do país, importa dizer que, em março, em referendo, foram aprovadas reformas que incluíram a criação de um estatuto de autonomia para o Procurador da República, e de um Comissário para os Direitos Humanos, e legislação, a publicar, a aprofundar a liberdade de expressão através da comunicação social. Serão também feitas alterações ao sistema eleitoral, que será do tipo misto, e às eleições locais e regionais. Haverá eleições legislativas em março próximo. Nas eleições de hoje, o candidato eleito terá um mandato de sete anos, não renovável.
Várias fontes contactadas no local, disseram-me que as emendas pró-democráticas, nada têm de hipocrisia ou de fachada, antes correspondem a um desejo sincero da cúpula do poder no país, e da maioria dos seus cidadãos.
Serve, ainda, para que o Cazaquistão tenha um modelo de governação próximo da democracia, o que contribuiu para o reforço da sua independência, e autonomia política, social e cultural, face aos grandes países com quem tem fronteiras, caso da Rússia e da China, ambos com regimes autoritários.

Mortes em distúrbios

As «presidenciais» têm como pano de fundo, esse conjunto de reformas para a implementação de um sistema democrático que o atual presidente, Kassym-Jomart Tokayev iniciou em 2019, mas que ficaram ensombrados em janeiro deste ano, com violentos protestos de rua, ocorridos em várias cidades e de que resultaram 220 mortos e milhares de detenções.
As autoridades falam abertamente do tema, dizendo que, ao todo permaneciam na prisão 1.728 pessoas, 1.500 das quais foram amnistiadas em setembro. As que permanecem detidas estarão envolvidas em atos de terrorismo, alta traição, extremismo, corrupção e organização de distúrbios. Entre estes estão 48 polícias ou similares que terão assassinado manifestantes ou praticado atos de tortura e que vão ser julgados. 117 pessoas já foram condenadas.

 
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