Fugiu da Ucrânia para Guimarães e só pede no ‘sapatinho’ que a guerra acabe para voltar para o pai

É o primeiro Natal que o pequeno Rostic vai passar longe do seu país

Rostic, de oito anos, já está em modo natalício. Não só está de férias escolares, como anda pelo Lar de Calvos, em Guimarães, com a sua fantasia de rena. O pequeno foi o porta-voz eleito pelos refugiados ucranianos que ali estão a residir para conversar com O MINHO.

Apesar de só estar em Portugal há alguns meses, Rostic fala e escreve na língua de Camões tão bem como qualquer criança portuguesa da sua idade. Se escrevesse uma carta ao Pai Natal (São Nicolau), fosse em ucraniano ou português, Rostic, este ano, pediria paz e que o seu pai pudesse estar novamente junto dele, da mãe e do irmão.

“A escola aqui é mais fácil”, reconhece a sorrir. Diz que se tem adaptado muito bem e que já tem muitos amigos portugueses. Orgulhoso, vai buscar os cadernos de Língua Portuguesa e de Matemática, estão recheados de “certos” e de observações à margem, com a letra da professora, “muito bom”.

A capa do caderno de Língua Portuguesa tem colado um desenho feito pelo aluno: o mar azul e a areia a amarelo compõem a bandeira ucraniana, numa cena a lembrar a forma como uma criança deve imaginar umas férias de verão felizes.

Rostic tem saudades da neve

Gosta de Portugal, “do clima e das pessoas”. Mas, em tempo de Natal, sente saudades da neve que sempre caia na sua terra, em Vinnitsa, uma cidade 360 quilómetros a noroeste de Kyiv. “No Natal comprávamos uma árvore e, enquanto eu, o meu pai e o meu irmão a decorávamos com estrelas, a minha mãe fazia boa comida, muitos bolinhos”, recorda.

Este ano será muito diferente, Rostic, a mãe e o irmão estão em Guimarães, mas o pai ficou na Ucrânia, por isso, pela primeira vez o Natal não será festejado em família. Fala destas coisas tristes com valentia, sente-se-lhe a tristeza, mas mantém-se de cabeça levantada.

Os dias que vão do meio de dezembro até ao início de janeiro costumam ser generosos para as crianças ucranianas. Tudo começa na noite de 18 para 19 de dezembro (dia de São Nicolau). Durante a noite, enquanto as crianças dormem, os pais colocam prendas e doces nas suas camas para que elas os encontrem quando acordam.

São Nicolau inspirou o Pai Natal nas tradições ocidentais e também é reverenciado como padroeiro dos estudantes – como no caso das Festas Nicolinas, em Guimarães –, mas entre os ortodoxos é visto como padroeiro das crianças.

Os tempos não são os melhores para estes ucranianos, mesmo assim, Iulia, uma mãe de 39 anos que está no Lar de Calvos com o filho, assegura que “amanhã [19 de dezembro] as crianças vão ter alguma surpresa, mesmo que não seja o habitual”.

Iulia só teve oportunidade de estudar ucraniano no 5.º ano, depois da dissolução da União Soviética. Foto: DR

O dia 25 de dezembro não é a data em que a maior parte dos ucranianos celebram o Natal. “O nascimento de Cristo para os ortodoxos é festejado no dia 07 de janeiro”, explica Iulia. “Mas, não é assim para todos, 30% dos ucranianos são católicos, principalmente nas regiões mais para oeste”, aponta Iulia.

Em Kyiv, há várias igrejas católicas monumentais, incluindo uma grande catedral dedicada a São Nicolau.

Em Calvos, as seis mulheres e oito crianças são todos ortodoxos, por isso, volta a haver prendas para as crianças no ano novo. “Nessa noite colocamos as prendas debaixo da árvore, como vocês fazem no Natal”, descreve Iulia.

Para os mais pequenos ainda volta a haver prendas na noite de 06 para 07 de janeiro. “Nessa altura, nós, as crianças, levamos um prato especial aos nossos padrinhos, pode ser kutiá. Em troca eles oferecem-nos presentes”, explica Rostic.

“Este ano, os padrinhos estão longe, mas vamos arranjar uma maneira, talvez uma vídeo chamada e o envio de uma fotografia”, acrescenta Iulia, reforçando que é importante manter a normalidade possível para os mais novos.

A ceia de Natal ucraniana é composta por 12 pratos, simbolizando os apóstolos de Cristo, conta Iulia. “Um dos pratos principais, a kutiá, é uma iguaria doce à base de trigo cozido, temperado com mel e sementes de papoila”, descreve. “No dia 7, as famílias vão à missa ao meio-dia e durante a tarde passeiam”, conta Iulia, com as saudades a embargarem-lhe a voz.

Oleksandra é farmacêutica, mas o especialista em português é Rostic. Foto: Rui Dias / O MINHO

Rostic está satisfeito por estar de férias: “Aproveito para descansar e ontem fui à piscina”. Na escola, o que gosta mais de fazer é jogar futebol e afirma que é isso que quer fazer no futuro. “Quero ser futebolista, como Ronaldo, o melhor do mundo”, declara.

Iulia não se cansa de elogiar o acolhimento que têm tido em Guimarães. “Estamos muito bem instaladas, fomos muito bem recebidas pelo Município, pela escola, por todas as pessoas. Quando falamos com outros ucranianos que estão noutros lugares, percebemos que aqui estamos muito bem”, reforça.

As crianças mais velhas estão a seguir o ensino ucraniano ‘online’ e frequentam algumas disciplinas na escola portuguesa. “Na Ucrânia, no final do 11.º ano os alunos vão para a universidade, por isso, os mais velhos estão a seguir as aulas ‘online’, para poderem concorrer ao ensino superior lá. Mas foi-lhes permitido que seguissem algumas disciplinas aqui, até para poderem socializar e conhecer pessoas, algo que é muito importante na idade deles”, explica Iulia. “Temos um bom sistema de ensino ‘online’ na Ucrânia, já estava muito afinado antes da guerra por causa da pandemia”, indica.

Ortodoxos russos e ucranianos

A propósito do Natal, Iulia explica que uma parte do que está em jogo na guerra tem que ver com a separação da Igreja Ortodoxa Ucraniana do patriarcado de Moscovo. As duas Igreja estavam unidas, sob a liderança do patriarca russo, desde 1686.

Os russos sempre se opuseram firmemente a qualquer sugestão de separação. Todavia, a vontade de ter uma Igreja independente de Moscovo intensificou-se depois da invasão da Crimeia, em 2014 e do apoio dado pelo regime de Putin às milícias separatistas do leste do país.

Em janeiro de 2019, o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, assinou o documento que oficializou a separação da Igreja Ortodoxa Ucraniana, que assim deixou de responder a Cirilo I, o patriarca de Moscovo, simpatizante de Putin. A Igreja Ortodoxa Ucraniana passou a ser liderada pelo metropolita Epifânio.

Contudo, subsiste na Ucrânia uma Igreja Ortodoxa, liderada pelo metropolita Onófrio, que deve obediência a Moscovo. Mas mesmo este alto dignatário religioso não hesitou em classificar a invasão russa como “uma guerra fratricida”.

“Russo não quero falar”

Um pouco alheio a tudo isto, Rostic diz que vai aproveitar as férias para descansar e jogar futebol. Aos oito anos já viveu muito mais que muitas pessoas mais velhas. Vai mudando do português para o ucraniano, com algumas passagens pelo inglês, para fazer as traduções, com imensa naturalidade.

“Deixa ver”, contado pelos dedos, “falo ucraniano, inglês, português e russo, mas russo não quero falar”, remata. Oleksandra, de 28 anos, é a única mulher sozinha neste grupo de refugiados, acompanhou Rostic na entrevista e foi-lhe dando alguma ajuda. Quando soletra o seu nome pede que seja escrito com “o” e não com “a”, porque essa seria a forma russa do nome.

 
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