O dia em que Zeca Afonso cantou sobre freguesia de Barcelos

José Afonso durante concerto em Paris, a 10 de novembro de 1970. Foto: DR

Celebrar Abril é também recordar as canções de protesto. “Grândola Vila Morena” ou Zeca Afonso são símbolos do importante momento histórico que se viveu em 1974 e que, meio século depois, continuam a ser exaltados. No dia em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril, O MINHO conta a história desconhecida de uma canção de Zeca Afonso sobre um freguesia de Barcelos.

Foi em 10 de novembro de 1970 que o cantautor apresentou, num concerto em Paris, a música “Ao Passar em Carapeços”.

Começou o espetáculo, inserido na iniciativa “La Chanson de Combat Portugaise”, com a canção “Na Rua António Maria” e seguiu-se um inédito que nunca foi editado em disco. Tocou “Ao Passar em Carapeços”, uma canção que fala sobre uma passagem fugaz do cantor pela freguesia barcelense no ano de 1968.

Assim, o mais popular músico de intervenção português tocou, na Maison de la Mutualité. importante sala parisiense, uma música que falava sobre Carapeços. Utilizou um instrumental que não era original, foi adaptado da música popular alentejana “Ao Passar na Ribeirinha”. Contudo, a letra foi inspirada exatamente naquela freguesia de Barcelos. “Ao passar em Carapeços / Estava tudo à janela (…) Parece que nunca viram / Gente de fora da terra”, cantou Zeca Afonso.

Uma passagem de carro bastou para Zeca se inspirar e escrever uns versos. “Como no antigamente, assim como ainda acontece hoje no Portugal profundo, quando passa alguém por uma aldeia ‘perdida’ a gente dessa aldeia tem curiosidade em ver aqueles ‘estrangeiros’ que por sua terra estão passando e daí Zeca ao reparar nisso (tinha a faculdade de ser muito bom observador) ter feito a letra daquilo que ia vendo pela passagem por Carapeços”, explicou Mário Lima, um dos mais ativos divulgadores da obra do cantor, a O MINHO, em 2019.

Zeca Afonso terá escolhido cantar esta canção devido ao grande número de emigrantes provenientes do Minho que se encontravam em Paris na época, ainda de acordo com Mário Lima.

São estas explicações do divulgador que sobram para tentar perceber a motivação de José Afonso para escrever uma letra sobre a freguesia de Barcelos e cantá-la num tão importante concerto. A música “Ao Passar em Carapeços” nunca foi editada em disco, nem há mais registos fonográficos captados ao vivo.

A gravação original está disponível ‘website’ do arquivo da RTP, que tem excertos do encontro “La Chanson de Combat Portugaise”, no auditório da Maison de la Mutualité, onde está incluído o o momento musical protagonizado pelo Zeca. A música foi ainda divulgada no YouTube, no canal de Mário Lima, conhecido blogger que reúne o trabalho do artista.

Veio à procura de Rosa Ramalho

Terá passado em Carapeços em meados de agosto de 1968, depois de ter atuado no Clube Fluvial Vianense, a 06 de agosto. Tocou ainda em Moledo, terá ficado pela região do Alto Minho mais um dia para assistir a um auto popular e depois desceu até Barcelos.

Zeca e os acompanhantes queriam chegar a Galegos São Martinho para visitar a oficina de Rosa Ramalho, conhecida barrista barcelense. “No outro dia fomos a Barcelos (como foi difícil lá chegar…) à casa da Rosa Ramalho”, contou Rui Pato, guitarrista que acompanhou Zeca Afonso. O músico referiu ainda, num fórum dedicado ao cantor, que compraram “várias peças” de Rosa Ramalho.

O caminho para chegar até a Galegos foi difícil e pediram mesmo ajuda a alguns locais para que lhes indicassem o caminho. Nas fotografias que acompanham este texto, da autoria de Rui Pato, é possível ver Zeca e Zélia Afonso, sua esposa, com os jovens barcelenses que indicaram o caminho para a casa de Rosa Ramalho.

Concerto em Paris foi turbulento

A noite de 10 de novembro de 1970 não foi tranquila para Zeca Afonso. À entrada do auditório da Maison de la Mutualité, uma mítica sala de espetáculos de Paris, distribuíram-se panfletos a atacar alguns dos cantores que iam atuar naquela noite, como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Luís Cília, Tino Flores e o próprio Zeca Afonso.

A noite era dedicada à música de intervenção, como indicava o título do espetáculo: “La Chanson de Combat Portugaise”.

“Vai p’ra casa Zeca”. Lia-se numa das páginas do panfleto bilingue distribuído por um grupo de militantes de extrema-esquerda, composto por dissidentes do PCP. Acusavam o cantor português de pactuar com o regime ditatorial, uma vez que este não estava exilado e continuava a editar discos em Portugal apesar da censura.

Esse pequeno grupo estava presente no concerto e perturbou fortemente a noite, contribuindo com um clima de grande crispação. Os momentos musicais acabaram mesmo por ser interrompidos várias vezes, houve confrontos físicos entre a plateia e um dos mais contestados por essa facção foi Zeca. Interrompeu o concerto perante os apupos e não foi capaz de se conter perante as acusações graves de pactuar com o regime. “Estou disposto a fornecer indicações mais diretas àqueles que esperam que os cantores façam a revolução, enquanto eles estão sentados talvez no Café Luxemburgo”, atirou Zeca de cima do palco para os “três ou quatro” elementos do grupo que destabilizou toda a noite.

Foi uma noite de má memória para Zeca Afonso, como o próprio contou a José A. Salvador, na biografia “Livra-te do Medo”. “Recordo-me que uma vez, em Paris, fui completamente ridicularizado por um grupinho (…) Distribuíram uns panfletos bilingues que começavam assim: ‘Chora, camarada, Chora’. Tais indivíduos não sabiam sequer analisar a música e muito menos os textos. Grande parte das minhas canções eram de origem popular, “Lá vai Jeremias” e tantas outras. Os tipos achavam que eu era um choramingão como todos os cantores burgueses”, lembrou José Afonso, no livro publicado em 2014.

 
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