Quando o mundo Gira… bola

Reportagem publicada no jornal “Novo Panorama”, em 2011.

É um dos pontos de encontro da vila limiana. E um dos mais antigos bares do casco antigo. O Girabola é um dos ex-libris de Ponte de Lima e uma imagem de marca, um marco na noite limiana, famoso nas duas maiores festas pontelimenses: as Feiras Novas e a Vaca das Cordas. A par de outros bares também antigos, é dos que tem mais fama até porque se encontra na zona nobre dos bares, a Rampinha, ou melhor, na Rua Formosa.

Fernando do Girabola faleceu esta semana, vítima de doença prolongada

Falar do Girabola é falar de José Fernando Pereira de Abreu. O proprietário, natural de Viana, cedo veio fazer a sua vida em Ponte de Lima e por terras limianas encontrou a esposa com quem casou aos 18 anos. Hoje já não está tanto tempo no bar, um percalço na saúde fê-lo abrandar mas não perder o espírito que sempre o ligou ao seu Girabola, além disso, o bar está agora bem entregue ao seu filho Francisco Abreu, o “Chico do Girabola”. E porque falar da história deste bar é falar de Fernando, começámos com a sua história. Fernando nasceu há 57 anos em Santa Maria Maior, começou a labutar cedo, ajudando num bar: “Naquela altura tinha de se trabalhar, ajudava nas férias da escola no Bar do Luciano Espanhol, tinha sete ou oito anos”, diz. E foi sempre assim que concebeu a vida, trabalhar. Mas também naquilo que o faz feliz.

“Sempre gostei da restauração”, confessa. Mas porque em Viana tinha na juventude trabalhado numa lavandaria, esse foi o primeiro emprego que lhe arranjaram em Ponte de Lima – na Lavandaria Zeca.

Rua Formosa, Ponte de Lima (1977). Foto: DR

Veio para Ponte de Lima porque era a terra da sua mãe e aos 17 anos queria um novo rumo. Mas se na vila ao primeiro dia viu muita gente – era dia de feira, no segundo dia foi o inverso: “queria ir embora, não percebi porque não havia gente ao segundo dia”, conta a sorrir. Mas ficou por causa do amor que o levou a casar muito jovem com Ana Maria Alves Dantas. “Tiveram de vir os meus pais cá”, lembra.

Mais tarde a sua paixão pela restauração fê-lo adquirir a “A Tulha”, o restaurante em frente ao Girabola. Foram anos de muito trabalho e a consolidar clientela. Mais tarde veio o Girabola: “o meu filho Chico estava sempre a falar num bar, gostava mais de um bar, e como havia um espaço ali ao lado, metemo-nos nessa aventura”. Uma aventura bem sucedida que dura há 25 anos. Hoje ainda lá vai: “porque está no sangue”.

Família, uísque e Sporting

Fernando Abreu. Foto: Gil do Lago

Em Ponte de Lima Fernando Abreu sempre trabalhou em restaurantes, aos fins-de- semana e nas festas grandes, no Encanada e no Monte da Madalena, por exemplo. “Lutar sempre lutei”, afirma. E foi por não virar a cara à luta que quando nasceram os filhos gémeos – Marco e Fernando, a vida tinha de tomar novo rumo. Tentou maior independência, por isso trabalhava cada vez mais.

Comprou casa: “tenho uma grande garrafeira de uísque, uma das maiores do país”, diz como quem fala de um tesouro. E vale como um tesouro, no valor e na raridade de algumas garrafas de uísque. Tem de outras bebidas obviamente, mas a colecção de valor é de uísque. A jóia da coroa é um uísque com 68 anos, estimada em mais de 10 mil euros.

Conteúdo tão valioso não pode ser aberto e as garrafas valem mais fechadas. Só em ocasiões muito especiais se desvela o interior: “abri uma quando o Sporting foi campeão 18 anos depois”.

Momentos raros fazem ocasiões especiais. Mas o clube do coração já lhe ocupou mais a paciência: “faço parte do núcleo mas hoje já curei o toledo”.

Fernando construiu uma vida, um lar, uma reputação, um nome, de família e de bar, mas reconhece que além de lutar sempre: “os meus filhos ajudaram-me muito e a minha mulher”. Além de Chico, os gémeos Fernando e Marco, Guilherme é o mais novo dos seus quatro filhos. São uma família unida até na proximidade, Chico e Marco são seus vizinhos. Fernando trabalha agora nos Açores. A família está primeiro mas o bar é a vida que conquistou, a sua vida.

“Tenho boas recordações, os estudantes da Fernando Pessoa também me fizeram a casa, convivi muito de perto com os estudantes”, recorda.

Publicidade partilhada pelo Girabola nas redes sociais. Foto: DR

Mas o Girabola é literalmente internacional, é uma imagem de marca da noite limiana a norte do país, mas também no estrangeiro. Fernando aponta para um quadro de mais de dois metros de largura, da visita de holandeses aquando do Europeu de Futebol de 2004. Tem muitos amigos estrangeiros e emigrantes que o visitam de vez em quando. Mas Fernando Abreu também é internacional, já visitou Cuba, Brasil, México, Moçambique, etc, etc. Viaja com amigos porque o Girabola é como uma irmandade, fazem-se e conservam-se amigos. Por isso conhece muitos bares por esse mundo fora, como aquele que viu em Munique: “estavam lá cerca de 2000 pessoas, canecas grandes, aquilo é que era um bar, aquilo é que era um bar!”.

Porquê Girabola?

Hoje os tempos são outros mas o espírito do bar mantém-se. A decoração foi modificada, os
clientes renovam-se, os mais antigos vão ficando, é um lugar comum como comum é o convívio nos comuns espaços de lazer, que solidificam amizades.

Mas, e o nome? De onde vem o nome? “Esse nome veio de um programa desportivo que passava antigamente e que curiosamente se chamava Girabola”, explica o fundador. Até porque o Girabola no princípio estava mais vocacionado para salão de jogos.

“Hoje a juventude já não perde grande tempo com isso, há outras coisas”, reflecte. Por isso o bar foi-se moldando aos tempos. E os tempos trouxeram a tradição da noite às grandes festas concelhias, que Fernando garante terem sido influenciadas pelo Girabola.

Rua Formosa, mais conhecida por “Rampinha”, numa noite de Vaca das Cordas. Foto: DR/Arquivo

“Agora a Câmara tem a mensagem que as Feiras Novas são a romaria de noite e de dia, mas foi o Girabola que modificou a vida nocturna nas festividades, tinha o Zé do S.A. que naquela altura colaborava comigo”, afirma.

Eu e o Francisco Correia começámos com um rádio com música no carro, entretanto pusemos um rádio grande, e no ano seguinte já tínhamos uma aparelhagem, foi daí que surgiu a folia”, diz. E tem um desejo para as Feiras Novas: “Quem me dera que as Pereiras fossem só bares”.

Mas a festa não é só folia e Fernando sabe a importância da segurança: “Graças a Deus não tem acontecido nada, mas antes de elas começarem muitas vezes olho para aquela rampa e peço a Deus para tudo correr bem”.

Respeito pela noite

Fernando Abreu. Foto: Gil do Lago

Ter um bar não é só abrir, os regulamentos são para cumprir. Daí que seja necessário também por vezes umas estreita relação com as entidades e autoridades. Quanto à autarquia, Fernando Abreu diz agradecido: “felizmente temos agora um homem (presidente da Câmara) que olha para o futuro e dá valor ao que há”, enaltece. E um dos argumentos: “se não se colaborar o que acontece é que os jovens metem-se num carro e vão para fora, e aí podem ocorrer acidentes, assim também se evita tentando que eles fiquem perto de casa”. Fernando diz que o seu bar é seguro, tenta fazer sempre que o ambiente seja positivo e não concebe drogas no seu estabelecimento ou perto dele. Não só pela imagem mas porque esses são os valores. Até porque os clientes já sabem ao que vão.

Já teve problemas porque há sempre quem não saiba beber, e esse problema até foi com um amigo: ”chegou a certo ponto partiu para o insulto, mas aguentei-me, tem de ser, às vezes custa, mas temos uma postura a manter”. Por isso sabe melhor que ninguém que a bebida em exagero molda a personalidade, uns para melhor, outros para pior, o que fôr mais forte na personalidade.

Quanto a uma mudança de mentalidade das entidades quanto às Feiras Novas e aos bares, Abreu refere que “hoje já se dá mais valor porque têm um grande peso comercial e dão outra vida às festas”.

Orgulha-se de ter promovido as rusgas “feminina e masculina” do Girabola, juntamente com clientes, e diz que sempre esteve abertos a inventar novas coisas para dinamizar o bar e a noite nas festas. A lista de convidados especiais é extensa, por isso aqui vão só alguns: Paulo Portas, Manuel Monteiro, Manuel Ribeiro, Francisco Louçã, Álvaro Cunhal, Vital Moreira, e quando tinha a Tulha serviu Mário Soares: “muito cordial e simpático, um grande homem e grande Presidente da República”, defende.

Geração de Bares

O Girabola pertence a uma geração de bares que foram crescendo na zona antiga. Que marcaram e continuam a marcar a noite limiana. Mas o Girabola é característico pelo nome, a localização parece também ter contribuído para a fama: “não fazia sentido ser noutro lado, o Girabola é ali”.

A escolha foi uma “carolice”, uma “teimosia”: “aquilo era um armazém e o espaço era característico, começou como bar americano”, conta.

Fernando chegou a ter o Girabola II na antiga Discoteca Anatomia e pensou abrir uma “filial” em Ponte da Barca, que não se concretizou. Ainda hoje faz projecto e se a saúde ajudasse Abreu refere que abriria uma tasca típica, seria o seu próximo projecto.

O Chico do Girabola

Francisco Abreu. Foto: Gil do Lago

Francisco Abreu é o mais velho dos irmãos. Aos 35 anos [atualmente tem 42] gere um negócio que herdou do pai e que conhece há mais de 20. De pequenino habituou-se a ter no Girabola a segunda casa. Diz que para estar ali talvez tenha a ver com a “simpatia e feitio” que herdou do progenitor. Também ele é hoje a marca do Girabola, para a nova geração. É o “Chico do Girabola”.

A sua capacidade de trabalho e personalidade criaram a sua própria imagem que complementou a identidade impressa por Fernando Abreu. Há 11 anos é Francisco que dirige e é responsável pelo bar.

“Isto é construído à base de amizade, é um bar familiar, típico”, descreve. Também ele se preocupou em manter as regras para que tudo corra bem: “- quem entra aqui sabe que há respeito, no plano profissional e principalmente pessoal”.

Orgulha-se de ter um bar onde “não há confusões, não se desrespeita, não se fala muito alto”. Sabe que para estar atrás de um balcão é preciso saber estar, ser por vezes um confidente, um amigo, mas acima de tudo um profissional: “para quem está aqui, e vinco isso aos meus colaboradores, tem de ter sempre um sorriso, ser agradável, os clientes merecem isso, e ser profissional, todos os pormenores contam e para se perder clientes basta esmorecer, por isso sou um bocado exigente para que os clientes saiam daqui satisfeitos”, confere Chico. Mas também não é uma profissão fácil: “sacrifica-se muita coisa, as vezes apetece-me sair com os amigos, ir a um jantar, mas isto está primeiro, foi o que eu escolhi”, diz. E apesar de gostar de se divertir não confunde isso com o trabalho, no expediente não bebe enquanto trabalha e está sempre alerta.

É vê-lo a conferir se tudo está bem, onde andam os copos vazios e nunca perde as estribeiras mesmo que a casa esteja a abarrotar.

“É preciso saber falar, respeito toda a gente por isso quero que sejam também assim, mesmo com as autoridades tento respeitá-las ao máximo, por isso quero que se dirijam a mim respeitando também apesar de estarem a fazer o seu trabalho”, defende.

Desde que está à frente do bar diz só ter sido autuado uma vez.

“Tenho também os números dos vizinhos, temos uma relação cordial e apesar de olhar pelo meu negócio tento não prejudicar ninguém e eles antes de chamar a policia sabem que me podem ligar se algo estiver mal”, revela Francisco Abreu.

Crise

Entrada do Girabola. Foto: DR

Apesar da crise Chico não desarma e refere que faz mais sacrifícios, tendo mais trabalho para não ter mais encargos, mas que não vai subir preços. Até conta um episódio quando subiu o preço de uma bebida.

“Só durou um dia o aumento, começaram a perguntar se vendia ouro…”, diz a rir-se. Com o IVA a aumentar não vai ser fácil também no sector da restauração mas se há bar que contorna a crise é o Girabola. Nem que seja em boa disposição entre clientes e quem trabalha no bar.

Como profissional de um sector que vive da diversão, Chico é peremptório: “Ponte de Lima tem um mal, tem muito homem”. E garante que fala de forma estritamente profissional. O ambiente seria melhor se fosse equitativo. Mas tem mudado: “é verdade, mas ainda saem menos mulheres”. Uma situação que será genérica. E isso leva também a que alguns jovens saiam para fora, por isso Chico nota que a autarquia tem ajudado a mudar essa tendência. E revela que os pais também podem confiar: “se estiverem no Gira sabem que há situações que aqui não se permitem”.

Para um bar que já tem mais de 3000 amigos no Facebook [em 2011] não é de estranhar que tenha também coordenadas no GPS, Chico garante que nem sabia. Por isso nas Feiras Novas o Girabola é a referencia na noite, há muitos anos. E Francisco Abreu congratula-se que tenha sido o seu bar e o seu pai a dinamizar mais a noite limiana.

Ainda assim Chico queixa-se que agora não vende 1/3 do que vendia [nas Feiras Novas]: “aqui à volta há muitas roullotes, em qualquer espaço há um vendedor, e no caso se serem associações pagam menos para estar aqui nas festas”.

Ainda assim o Girabola concentra muita gente, como agora no fim do ano onde ja está a ser preparada mais uma festa. E até nisso Chico recorda o pioneirismo: “numa altura em que havia só festas a pagar, o bar estava fechado e o meu pai tinha sempre muita gente em casa, as vezes 100 pessoas, por isso pensámos abrir para rentabilizar e ter as pessoas aqui no bar”.

 
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