Miguel Esteves Cardoso esteve, domingo, na Feira do Livro de Barcelos, e ficou encantado com a música que ecoava pelo centro da cidade. O escritor, de 69 anos, deixou-se impressionar pelos grupos de pessoas que, de forma espontânea, todos os domingos, se juntam a cantar (e a dançar), entre o Largo da Porta Nova e a Avenida da Liberdade. E o que viu em Barcelos foi o motivo para a sua habitual crónica diária no jornal Público (acesso restrito).
E começa logo assim: “Se nunca foi a Barcelos, não vá a um domingo. A não ser que goste de chorar. Se gosta de chorar, vá à vontade. Mas aviso já: ninguém gosta de chorar assim”.
Miguel Esteves Cardoso afirma ter percebido “em Barcelos que, ao encontrar qualquer beleza numa terra longe da nossa, não é só a beleza que nos assalta. Também percebemos o que falta à nossa terra. Também somos atacados pela tristeza de voltar a um sítio onde aquela beleza já não existe — se é que alguma vez existiu, o que seria menos triste”.
“Ao entrar em Barcelos, vamo-nos abaixo porque não estamos habituados a ouvir vozes a cantar na rua. As vozes chegam-nos do mesmo plano, ali perto, livres. Não há palco. Não há microfones. Não há bilhetes. Não há multidão”, acrescenta.
A crónica prossegue, afirmando: “Em Barcelos canta-se tanto — e tão bem — que só umas poucas pessoas param para ver quem canta. Quando eu lá estive, eram mais as cantoras e os músicos do que os espectadores: éramos só seis ou sete. Tinham-me dito, obviamente, que em Barcelos ainda se cantava e tocava espontaneamente, como quem se põe a conversar num domingo à tarde, para passar o tempo, para restaurar a humanidade. Mas eu não acreditei. Pensei que houvesse organização, promoção, marketing, encenação profissional. Mas não há nada disso. Só pessoas a cantar. E cantam muito, muito bem. E é isso que faz chorar”.
Rendido às vozes das cantadeiras e cantadores, o cofundador e ex-diretor do semanário O Independente escreve: “Não sabemos os nomes. Os nomes não interessam. E gostam muito de cantar – muito mais do que nós gostamos de ouvir. É isso que faz chorar: é uma dádiva. Em Barcelos, a música ainda se dá”.
A “alma invejosa” do escritor ainda lhe disse que “também Barcelos há-de sucumbir às forças do mercado e do turismo, e estas cantoras hão-de perder a vontade de cantar só porque lhes apetece”.
“Mas não acredito. Barcelos vai-se aguentar, porque não lhe custa ser livre e fazer o que lhe apetece. Já nasceu assim, a criar beleza para lutar contra a monotonia do trabalho e da vida. Já muitos terão tentado aproveitar a espontaneidade e a beleza musical destas cantoras e destes músicos para ganharem alguma coisa. Falharam”, conclui.