Luto nacional na quarta-feira pela morte de Eduardo Lourenço

Óbito

O primeiro-ministro, António Costa, anunciou hoje que quarta-feira será dia de luto nacional, pela morte do ensaísta Eduardo Lourenço, aos 97 anos.

“Amanhã [quarta-feira] será dia de luto nacional, no dia em que dos despediremos do professor Eduardo Lourenço”, disse António Costa, que falava aos jornalistas à margem das comemorações do 1.º de Dezembro, em Lisboa.

O ensaísta Eduardo Lourenço, Prémio Camões e Prémio Pessoa, morreu hoje, aos 97 anos, deixando uma vasta obra de “grande originalidade”, e a imagem do homem que permitia “a única reflexão inteligente sobre a política nacional”.

Professor, filósofo, escritor, crítico literário, ensaísta, interventor cívico, várias vezes galardoado e distinguido, Eduardo Lourenço foi um dos pensadores mais proeminentes da cultura portuguesa, sempre solicitado, mas que considerava não justificado o interesse das pessoas por ele: “Porque estou saindo. Eu nunca ocupei palco”, explicou, numa entrevista ao jornal Público, em 2017.

Hoje saiu de cena, mas deixa a marca da “grande originalidade” do seu pensamento – de acordo com a página a si dedicada, do Centro Nacional de Cultura –, e a imagem do ensaísta que permitia “a única reflexão inteligente sobre a política nacional”, como o definiu o poeta Herberto Helder, numa carta de 1978.

Outras definições o caracterizam, como a do ensaísta Eduardo Prado Coelho, que o considerava alguém para quem “a aventura do conhecimento e a aventura da vida se confundem permanentemente”, ou a de Fernando Namora, que, em 1986, escreveu que Eduardo Lourenço era “um dos espíritos mais sagazes, de uma fulgurância estonteadora, que o ensaísmo português alguma vez produziu”.

Apaixonado pela literatura, referia-se aos livros como “filhos” e dizia que “estar-se sem livros é já ter morrido”.

Mas foi sobretudo sobre a poesia, mais do que a prosa, que incidiram os seus ensaios, de Luís de Camões a Miguel Torga, passando por Fernando Pessoa.

Eduardo Lourenço Faria nasceu em 23 de maio de 1923, em S. Pedro do Rio Seco, no concelho de Almeida, na Beira Baixa, mas só foi registado no dia 29 desse mês.

Esteve “seis dias sem tempo” e assim ficou sempre, “fora do tempo”, afirmou numa entrevista à revista Prelo.

O mais velho de sete irmãos, e filho de um militar do exército, frequentou a escola primária da aldeia onde nasceu e matriculou-se, posteriormente, no Colégio Militar, em Lisboa, onde concluiu o curso em 1940.

Inscreveu-se na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, de que desistiu, para prestar provas, mais tarde, em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da mesma instituição.

Era um “dos melhores em Filosofia, não porque repetisse as aulas como um papagaio, mas por ter revelado um arguto espírito crítico e uma ideia já autónoma”, segundo a descrição, à revista Prelo, que dele fez o escritor e pedagogo Mário Braga, ex-editor da Vértice.

Eduardo Lourenço concluiu a licenciatura em 1946, com uma tese sobre “O Sentido da dialética no idealismo absoluto”.

No ano seguinte, passou a lecionar como assistente e colaborador do professor Joaquim de Carvalho e, em 1949, com apenas 26 anos, reuniu parte da sua tese de licenciatura no primeiro volume de uma obra intitulada “Heterodoxia”, “um dos mais nobres e perturbantes discursos ensaísticos de toda a nossa história literária”, como a classificou o professor e ensaísta Eugénio Lisboa.

Antes disso, em 1944, Eduardo Lourenço começara a colaborar com a revista Vértice, publicação em que se estreou com o poema “Aceitação”, um prelúdio de “Heterodoxia”.

E foi com “Crónicas Heterodoxas” que colaborou também com o Diário de Coimbra, publicação histórica da cidade onde conviveu com o escritor Vergílio Ferreira e onde viria a ser associado a uma determinada forma de existencialismo, influenciado por filósofos como Heidegger, Nietzsche, Husserl, Kierkegaard e Sartre, e pela leitura de escritores como Dostoievsky, Kafka e Camus.

Homem de esquerda, mas com uma visão crítica dessa corrente, o ensaísta nunca se deixou enfeudar em qualquer escola de pensamento.

Em 1949, partiu para França, a convite do reitor da Faculdade de Letras da Universidade de Bordéus, com uma bolsa de estágio da Fundação Fulbright.

Em 1953, iniciou uma carreira académica, tendo lecionado em diversas universidades europeias e americanas, designadamente, nas de Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, Montpellier, Grenoble e Nice, em França, e na da Baía, no Brasil, entre outras.

Casou-se com Annie Salamon, em Dinard, em 1954, e, a partir de 1960, passou a viver em França.

Cinco anos mais tarde, em 1965, fixou residência em Vence, na região dos Alpes Marítimos, no sudeste francês, mas manteve sempre ligação ao país de origem, refletindo sobre a sociedade portuguesa.

“Como é que um homem nascido em S. Pedro do Rio Seco pode ser outra coisa que não português?”, disse o ensaísta, em 1986, ao Jornal de Letras, Artes e Ideias.

Dois anos mais tarde, por ocasião da edição da Assírio & Alvim, que reuniu os dois volumes de “Heterodoxia”, Eduardo Lourenço concedeu uma entrevista à revista do Expresso, na qual assumiu – em resposta à pergunta “Qual é a sua cidade?” – que S. Pedro do Rio Seco era a sua “Paris-Texas”, numa alusão ao filme de Wim Wenders.

O tema da Europa, e do lugar de Portugal na Europa, é recorrente na obra do autor, e “O Labirinto da Saudade”, de 1978, o seu trabalho mais celebrado, é o exemplo de “um discurso crítico sobre as imagens que de nós próprios temos forjado”, nas palavras do próprio autor.

Em 1988, o então professor jubilado da Universidade de Nice recebeu o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, pelo conjunto da obra, e, um ano depois, assumiu o cargo de conselheiro cultural junto da embaixada de Portugal em Roma, onde permaneceu até 1991.

Vários prémios se sucederam, com destaque para o Prémio Camões, em 1996, e o Prémio Pessoa, em 2011.

Recebeu também os prémios António Sérgio (1992), D. Dinis (1996), Vergílio Ferreira (2001), Universidade de Lisboa (2012), Jacinto do Prado Coelho (em 1986 e em 2013) e Vasco Graça Moura (2016), entre outros.

Em 1999, foi nomeado administrador não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.

Além da filosofia, da literatura, da música e da pintura, áreas em que se aventurou, através de obras como “Tempo da Música, Música do Tempo” (2012), e dos quadros de Vieira da Silva, nas artes plásticas, com “Espelho Imaginário”, de 1981, a intervenção cívica também atraiu este pensador, que aderiu à União de Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS), em 1978, liderada por António Lopes Cardoso, que contou com nomes como os de César de Oliveira e Francisco Pessegueiro, e com o apoio de personalidades como Maria de Lourdes Pintasilgo.

Em 1980 Eduardo Lourenço apoiou a recandidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República e, em 1985, integrou a candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo, na primeira volta das Presidenciais, e de Mário Soares, na segunda.

Em 1980/1981, o autor de “Os Militares e o Poder” participou no filme “Gestos e Fragmentos”, de Alberto Seixas Santos, ensaio sobre o papel dos militares no 25 de Abril de 1974, à luz do golpe do 25 de novembro de 1975.

Entre condecorações e distinções, Eduardo Lourenço recebeu as ordens de Grande Oficial de Santiago e Espada (1981), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (1992), a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e Espada (2003) e a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (2014).

França distinguiu-o com a Ordem Nacional de Mérito (1996), a Ordem das Artes e das Letras (2000) e a Legião de Honra (2002), e em 2008 recebeu a medalha de Mérito Cultural do Governo Português e a Ordem de Mérito Civil de Espanha.

Doutorado Honoris Causa pelas Universidades do Rio de Janeiro, de Bolonha, de Coimbra e pela Nova de Lisboa, tomou posse, a 07 de abril de 2016, como Conselheiro de Estado, designado pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Nesse mesmo ano, venceu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, ex-aequo com o cartoonista francês Jean Plantureux, conhecido como Plantu.

Em 2018, foi protagonista e narrador da sua própria história, num filme de Miguel Gonçalves Mendes, que teve antestreia a 23 de maio, dia em que Eduardo Lourenço completou 95 anos.

Intitulado “O Labirinto da Saudade”, o filme adapta a obra homónima de Eduardo Lourenço e traça uma viagem através da cabeça do pensador português, constituindo-se como uma “homenagem em vida” do realizador ao ensaísta.

Nesse mesmo ano, a propósito da polémica em torno de um possível “Museu das Descobertas” em Lisboa, devido sobretudo ao nome e ao programa, que foram classificados como “neo-coloniais”, o ensaísta deixou bem clara a sua oposição ao que chamou de “crucificação” do país pelo seu passado colonizador, quando não houve maldade na génese e o mal feito já não podia ser reparado.

“Acho extraordinário, num momento em que a Europa é quase toda ela democrática, que, de facto, um país com menos problemas graves e de difícil resolução no mundo seja objeto desta espécie de penitência pública”, lamentou.

Exatamente um ano mais tarde, Eduardo Lourenço cumpriu uma das suas derradeiras aparições públicas, numa homenagem em que o primeiro-ministro, António Costa, sublinhou a “sabedoria ilimitada” do ensaísta, e defendeu a celebração da data, “como um dia de festa da cultura portuguesa”.

Marcelo Rebelo de Sousa celebrou igualmente os 96 anos de Eduardo Lourenço, com uma mensagem na página da Presidência, e a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa instalou uma estátua sua, em bronze, da autoria de Leonel Moura, nos jardins da sua sede em Lisboa.

Nesse dia, o autor de “Fernando, Rei da Nossa Baviera” falou sobre o papel de Portugal na história, associando-o a uma “vontade de não abdicar do sonho”, uma “vontade um pouco louca”.

“Portugal viajou uma viagem por conta própria, um sonho, e esse sonho não tem fim e não terá fim”, disse Eduardo Lourenço. “Os portugueses atreveram-se tanto quanto podiam, talvez, e esse atrevimento é aquele que ficará realmente na história de nós”.

Quando fez 95 anos, Eduardo Lourenço confessou, em entrevista à Lusa, que era “dificil assumir” o aniversário, porque sabia que era “o princípio do fim”, mas que não o encarava “como uma coisa trágica”, porque “todos estamos confrontados com essa exigência”.

“A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar àquilo que nos espera, seria uma injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou o fim deles”, afirmou. “É ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós amámos estivessem connosco”.

 
Total
0
Partilhas
Artigos Relacionados
x