O Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, mais do que duplicou em 2021 o número de colheitas de órgãos para transplante, face ao ano anterior, um registo que a diretora do gabinete ambiciona melhorar.
Dados remetidos à agência Lusa, que comparam 2020 e 2021, mostram que o hospital registou um aumento superior a 104%, passando de 25 para 51 órgãos, e a maior colheita verificou-se no grupo de dadores em morte cerebral (38).
Já as colheitas em dadores em morte circulatória não controlada (13) refletem o período de interrupção da atividade devido à covid-19.
Em entrevista à Lusa, a diretora do Gabinete de Coordenação Colheita e Transplante do CHUSJ, Margarida Rios, reconheceu que, “com a pandemia, houve redução de colheitas”, algo transversal a outros países, mas garantiu que o Hospital de São João “manteve a capacidade de resposta sem perder um dador de órgãos por falta de camas”.
“No caso de um dador em paragem circulatória, o processo dá-se em sala de emergência. Existiram normas nacionais e, no início, considerou-se mais prudente suspender. Acho que o Hospital de São João, na urgência e nos cuidados intensivos, manteve sempre a capacidade de resposta, mas ouvimos essa justificação de outros centros hospitalares”, disse a responsável.
No CHUSJ fazem-se transplantes de rim e coração, bem como de tecidos (córneas e células hematopoiéticas).
A colheita de outros órgãos beneficia outros centros hospitalares nos quais são feitos outro tipo de transplantes.
Além dos doentes do CHUSJ, são referenciados para este hospital dadores dos chamados “hospitais afiliados”: Pedro Hispano (Matosinhos), Penafiel (Porto) e Viana do Castelo.
O IPST permitiu o reinício da colheita em dador em paragem circulatória em fevereiro de 2021.
Nesse ano, o CHUSJ registou “o maior número de transplantes de órgãos dos últimos anos” com 98 transplantes. O aumento registado face a 2020 (mais 57) deriva quase na totalidade do transplante renal, cujo peso representa 87% do total de órgãos transplantados.
Dos 85 transplantes de rim realizados, cinco dos quais foram de dador vivo.
Já o serviço de cirurgia cardiotorácica realizou 13 transplantes cardíacos, para os quais contribuíram sete dadores de colheitas feitas no CHUSJ e seis dos hospitais afiliados.
Já no que se refere ao transplante de tecidos, o acréscimo foi de mais 43,8% face a 2020, com mais expressão no transplante de córneas (mais 65%).
“Estamos tão eficientes que se tivéssemos mais espaço se calhar ainda éramos capazes de dar mais resposta”, disse a diretora.
À Lusa, a médica falou do panorama atual em Portugal, considerou que no Norte reside o motor principal da recuperação, e lançou pistas para o futuro.
“Portugal a nível mundial, tem sempre estado nos primeiros lugares no número de dadores por milhões de habitantes. O Hospital de São João subiu de 25 para 51 colheitas [entre 2020 e 2021], o que corresponde a um aumento de 104%. O [Hospital de] Santo António também subiu 94%. Coimbra subiu um bocadinho e em Lisboa houve um centro hospitalar que reduziu e outro praticamente não se alterou. Notou-se uma assimetria marcada no Norte”, descreveu a especialista, socorrendo-se de dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST).
Portugal segue o modelo legislativo do consentimento presumido, ou seja, todas as pessoas são potenciais dadores de órgãos a não ser que recusem antecipadamente.
É permitido recolher órgãos em dadores em morte cerebral, bem como em paragem cardiocirculatória não controlada (DPCC), o que inclui, por exemplo, situações de emergência ou paragem cardíaca súbita.
Contando com o CHUSJ, são cinco os centros hospitalares do país com gabinetes ligados a esta área.
Margarida Rios realça que “Portugal tem estado à escala mundial numa posição muito boa”, mas acredita que o país “já está preparado” para discutir mais alternativas na área da transplantação e, com isso, ir reduzindo as listas de espera.
“A nível internacional, o grupo de dadores em paragem circulatória tem uma maior expressão em pessoas que não são os dadores que vêm da rua em paragem súbita. São pessoas em paragem circulatória controlada, pessoas que estão em cuidados intensivos e apresentam uma situação cerebral catastrófica. Isto não está legislado em Portugal. Mas acredito que este grupo venha a significar um ‘pull’ de órgãos significativo”, referiu a especialista.
Em causa estão doentes internados em cuidados intensivos que têm um prognóstico muito mau, lesões irreversíveis e a perspetiva de falecimento a curto prazo.
“Quando comunicamos com uma família, cujo familiar está em morte cerebral, explicamos a irreversibilidade da situação. Morte cerebral é igual à morte do indivíduo e compreende-se que aquela pessoa é dadora de órgãos. Na morte por paragem circulatória não controlada explicamos que tentamos reanimar exaustivamente a pessoa e não conseguimos. É aceitável porque se verifica o óbito. Só depois é que se fala em colheita de órgãos. Para este grupo [paragem circulatória controlada], a mensagem é mais difícil de transmitir”, descreveu a médica.
Margarida Rios admite que a questão é “sensível”, “eticamente delicada” e exige uma discussão “muito transparente”, mas reitera que “com esse grupo seria possível aumentar o número de órgãos para transplante e diminuir as listas de espera”.
“É um processo que o IPST ainda tem de desenvolver ao nível do enquadramento legislativo”, referiu.
Alargar os critérios de aceitação, ainda que “em Portugal a idade já não seja um critério absoluto”, pode constituir também um ganho no número de colheitas possíveis, concluiu a diretora.