A meio do mês de março o Governo decretou a interrupção de todas a atividades não urgentes no SNS, para que os serviços de saúde tivessem capacidade de responder à pandemia. Ao nível dos cuidados de saúde primários, foram especialmente afetados por esta suspensão a vigilância de hipertensos e diabéticos e os rastreios do cancro da mama, colo do útero e colorretal.
A retoma só se iniciou em julho, de forma muito gradual, apesar do Ministério da Saúde e a DGS falarem em recuperar as consultas perdidas. As consultas presenciais, na ARS-Norte, em julho de 2020, ainda só somavam 319.710, depois de um mínimo, em abril, em que se realizaram apenas 157.505 destes atos médicos, quando em janeiro chegavam quase ao 760 mil. No primeiro mês da retoma, ainda houve menos 438.025 consultas presenciais do que as que e realizaram no primeiro mês do ano.
Ao mesmo tempo que diminuíam as consultas presenciais, aumentou a realização de consultas não presenciais (as teleconsultas, ou consultas telefónicas). Estas consultas telefónicas, na ARS-Norte, desde 2014 até 2019, nunca ultrapassaram muito as 400 mil por mês. Em março, subiram para quase 524 mil, 683.367 em abril, 711.752 em maio e 761.952 em junho. Mesmo no mês de julho, apesar de alguma retoma das consultas cara a cara, as consultas não presenciais continuaram a subir na ARS-Norte, tendo atingido as 813.354.
O aumento das teleconsultas, contudo, não aconteceu apenas a partir de março. Recorde-se que o Presidente da República decretou o primeiro estado de emergência a 18 de março, mas já antes disso os portugueses tinham começado a assumir comportamentos mais cautelosos. Entre fevereiro e março o aumento de consultas pelo telefone foi de cerca de 188 mil, de 336.114 para 523.873, no universo da ARS-Norte.
Estes são números disponibilizados pelo SNS, atualizados a 20 de agosto, que permitem ter uma imagem da situação como ela estava no momento em terminou o primeiro encerramento do país. Desde essa altura, a impressão generalizada é que as unidades de saúde permaneceram fechadas e que o método de trabalho, nas unidades de saúde, continuou a assentar no contato telefónico com os utentes.
Trabalhar desta forma tem limitações, que começam na falta de linhas telefónicas e de equipamentos nas unidades de saúde. O sistema não foi dimensionado para trabalhar desta forma. Acresce que, além do trabalho que habitualmente é feito pelos cuidados de saúde primários, as unidades de saúde familiar estão agora a colaborar com as unidades de saúde pública, na realização de contatos a pessoas em isolamento profilático. O MINHO tem conhecimento de várias unidades de saúde familiar onde médicos e enfermeiros estão a usar os seus telefones particulares para assegurar o serviço, “de outra forma não é possível fazer os contatos, porque não há linhas que cheguem”.
Outro constrangimento a esta maneira de trabalhar é a iliteracia digital de uma parte da população, principalmente os mais velhos. Embora o contacto verbal seja feito por telefone, é preciso depois ser capaz de enviar documentos digitalizados (análises, resultados de exames), ou receber e lidar com a receita eletrónica. Para uma grande parte da população mais idosa isto são entraves. É precisamente nesta faixa etária que se encontra o maior número de pessoas que precisam de vigilância periódica mais apertada.
Parte do sucesso em saúde passa pelo seguimento, vigilância e pela deteção precoce. É, naturalmente, mais difícil vigiar ou detetar à distância. Os indicadores de controlo da população diabética e hipertensa na ARS-Norte exprimem esta dificuldade.
Há menos 34,6% diabéticos controlados no Alto Minho em 2020
Há menos 31,1% diabéticos com o exame dos pés realizado no último ano, em julho de 2020 que no mesmo mês do ano anterior. No Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Cávado III, Barcelos e Esposende, esta redução de diabéticos controlados atinge os 34,7%, é de menos 34,6% no ACES do Alto Minho e de menos 32,2% no ACES Cávado I, Braga.
“Estima-se que cerca de 15% da população diabética tenha condições favoráveis ao aparecimento de lesões nos pés, nomeadamente pela presença de neuropatia sensitivo-motora e de doença vascular aterosclerótica”, lê-se na norma da DGS que regula a abordagem terapêutica a este problema. O Pé Diabético é a principal causa de internamento hospitalar entre os diabéticos e é causa de “40 a 60% de todas as amputações efetuadas por causa não traumáticas”.
É por isso que é tão importante os diabéticos façam este exame com intervalos máximos de um ano. Na ARS-Norte a percentagem do universo dos diabéticos controlados, nos últimos dois anos, rondou os 85%, em 2020 caiu para os 50%. No ACES do Alto Minho a percentagem de diabéticos com o exame do pé feito nos últimos doze meses caiu para 41%.
O número de hipertensos controlados na ARS-Norte baixou quase 30% em 2020
Entre os hipertensos, o número de doentes, menores de 65 anos, com pressão arterial menor que 150/90 (controlados) baixou 28,9%, de 206.322 para 146.797. Os valores da pressão arterial da população hipertensa devem ser controlados a cada seis meses.
Desde 2014, a percentagem de hipertensos controlados, na ARS-Norte, andou sempre acima dos 60%, atingindo um máximo histórico de 66%, em 2019.
Em junho de 2020, a percentagem de hipertensos com registo de medição da pressão arterial inferior a 150/90 era de 46,7%. No ACES do Alto Minho, onde este indicador já era mais baixo que no resto da região, em junho de 2020 desceu até aos 36,2%.
Entre maio e junho realizaram-se menos 6.598 mamografia que no ano anterior
Um problema que ainda não é detetável nos números é o causado pela paragem dos rastreios do cancro da mama, colo do útero e colorretal. Estes rastreios são feitos de dois em dois anos, a mamografia, cinco em cinco ou três em três, a citologia vaginal e dois em dois, a pesquisa de sangue oculto nas fezes, portanto, só no final do ano é que será possível avaliar o impacto do período em que estiveram suspensos. Ele será tanto menor quanto mais o sistema conseguir recuperar até ao final do ano.
Os primeiros meses de 2020, na ARS-Norte, apresentam números de adesão aos rastreios, dos vários tipos de cancro, superiores que no mesmo período em 2019. Não é de esperar que o ano termine neste cenário. A título de exemplo, entre maio e junho de 2019, realizaram-se na ARS-Norte 8.142 mamografias, no mesmo período de 2020, foram feitas apenas 1.544.
Entre 01 de janeiro e 30 de abril deste ano, segundo a ARS Norte foram convidadas a participar nos três rastreios 164.052 pessoas (menos 26% que em 2019) e foram rastreadas 95.465 (menos 23% que em 2019). “Os motivos de ausência estão relacionados com a evolução da situação epidemiológica da covid-19”, reconhece a ARS Norte. “As pessoas que tinham rastreio agendado para este período de confinamento vão ser chamadas para a realização do rastreio durante os próximos quatro meses”, afirmava a ARS, em julho passado.
Considerando a situação que se conhece nos cuidados de saúde primários do SNS, é possível que o objetivo enunciado pela ARS Norte, em julho, seja difícil de atingir. À situação de saturação do SNS, agravada pelo aumento dos casos que precisam de vigilância ativa, devido ao aumento do número de infeções na segunda vaga, junta-se o medo que algumas pessoas têm de entrar em instituições de saúde nesta fase.
Um primeiro balanço das consequências desta suspensão é feito no final de 2020. A longo prazo serão feitas outras contas, nomeadamente se os números da mortalidade tiverem relação com esta falta de vigilância e diagnóstico.