O movimento “Servir sem Olhar” nasceu de forma natural, a partir de uma série de iniciativas que Jorge Santos, morador em Urgezes, envolvido politicamente, duas vezes candidato à Junta de Freguesia, foi desenvolvendo ao longo dos anos. Nos últimos dois anos, com o surgimento da pandemia, ganhou nome e página na internet, tornou-se em algo mais organizado, contudo, resiste à ideia de constituir uma associação, “para não se perder em burocracia”.
“A nossa grande a vantagem é a rapidez. Ajudamos quem precisa, quando precisa. Não queremos perder isso arredando-nos em papeis”, esclarece Jorge Santos, quando se fala de dar uma estrutura mais institucional ao movimento. “Corremos o risco de cometer alguns erros, mas prefiro isso a deixar sem ajuda alguém que precisa”, aponta.
Durante a pandemia, quando as instituições ainda se estavam a ajustar, nós começamos logo a ir fazer as compras às pessoas mais frágeis, ou que estavam isoladas. Também começamos a distribuir luvas, mascaras, batas e viseiras. Compramos, inclusivamente os medicamentos a quem não podia sair, adiantando o dinheiro. Esta flexibilidade vem-lhes da informalidade, reconhece Jorge Santos.
Talvez pela sua exposição política, as pessoas começaram a bater-lhe à porta, conta. “Às vezes eram situações que se podiam resolver com uns telefonemas a uns amigos que estão bem colocados. Arranjar um emprego para alguém que precisa de dar comida aos filhos, outras vezes eram coisas mais complicadas e fui criando uma rede de pessoas que me ajudam, ainda hoje”, relata.
Estas ajudas são empresários, grandes e pequenos, mas também cidadãos que foram acompanhando o trabalho de Jorge Santos e que se quiseram associar ao esforço. “Não me posso esquecer da professora reformada que me contactou para doar, mensalmente, 50 euros. Não aceitei, mas, pontualmente, quando há situações que só se podem resolver com dinheiro, recorro a ela”, descreve. Quando se trata de movimentos de dinheiro, é tudo documentado com faturas, para que as pessoas que ajudam possam verificar. Nos casos, mais comuns, de ajuda em géneros, as fotografias fazem prova das entregas, embora salvaguardando a privacidade das pessoas, principalmente se forem menores.
Jorge Santos reconhece que cometeu o erro de apoiar estas iniciativas na sua página política. “Gerou confusão, por isso, agora, foi separado”, justifica. As redes sociais são o grande motor do trabalho do “Servir sem Olhar”. Uma família precisa de um fogão, Jorge aciona a rede e aquilo que antes demoraria dias a resolver, agora, tem solução em horas, às vezes minutos. O “Servir sem Olhar” é um pivot entre as pessoas que podem ajudar e as que precisam de ajuda.
Lixo não serve para dar
“Não sai daqui nada que não sirva para mim e para os meus filhos”, afirma Jorge Santos, no enorme armazém, por baixo de sua casa, onde guarda os donativos que vão chegando. O que é possível reparar é reparado e o que não tem utilidade vai para o lixo. Como tem uma organização leve, assente em trabalho voluntário, muitas vezes os donativos nem chegam a vir ao armazém. Um dos voluntários empresta a sua carrinha e faz-se o transporte diretamente da casa de quem dá para a casa de quem precisa.
A pandemia multiplicou as necessidades. “Colocou a nu um problema que já existia”, diz Jorge Santos. De repente foi preciso acudir a muitas mais situações. “Ninguém estava preparado para ter dois ou três computadores em casa”, lembra. O “Servir sem Olhar” já doou 40 computadores e, durante a conversa com O MINHO, surgiu a notícia da chegada de um tablet e um PC que ficam disponíveis para quem deles precisar.
Há pessoas que foram ajudadas e que agora já ajudam outras
O perfil das pessoas que recorrem ao “Servir sem Olhar” é muito distinto. “Há os divórcios, homens e mulheres que, desfeita a relação, ficam sem nada, mas principalmente mulheres com filhos. Depois há os imigrantes, gente que foge de uma miséria para encontrar outra”, esclarece. Todos têm em comum o facto de precisarem de ajuda urgente que não pode esperar pela tramitação das instituições. “Já evitamos suicídios”, afirma Jorge Santos.
Um dos orgulhos do movimento é ver pessoas que antes foram ajudadas e que agora, tendo melhorado a sua condição, estão em posição de ajudar outros. “Como o casal brasileiro que chegou aqui sem nada e que, com a nossa ajuda montou uma casa e arranjou um emprego. Agora, estão na Suíça e acabaram de me contactar para transferirem dinheiro para adquirirmos um colchão que precisamos para outra família”, conta Jorge Santos, mostrando a mensagem no telemóvel.
Outro emigrante brasileiro, engenheiro informático, a quem foi dado um computador, já consegue trabalhar a partir de casa e dessa forma sustentar a família. “Somos uma boia de salvação, uma ajuda de emergência, procuramos encontrar soluções para que as pessoas deixem de precisar de ajuda. Há situações que implicam uma ajuda continuada e, nesses casos, o “Servir sem Olhar” procura fazer o encaminhamento para a Segurança Social e para os serviços da ação social do Município.
Angariar 3.500 euros em poucos dias
Uma das coroas de glória do trabalho do “Servir sem Olhar” foi quando, em dezembro de 2020, conseguiu angariar, em poucos dias, 3.500 euros para adquirir uma cadeira elevatória para a Ana Cláudia, uma menina com trissomia 21, autismo, atraso no desenvolvimento, epilepsia, dificuldade respiratória e mobilidade reduzida.
Vídeo: Rui Dias / O MINHO
As cadeiras de rodas e as camas elevatórias estão entre os artefactos mais pedidos e para os quais é preciso dinheiro. O movimento já distribuiu vários destes equipamentos e alguns são devolvidos, quando os utilizadores morrem, para serem distribuídos a outras pessoas. Jorge acredita na criação de uma corrente positiva, “é por isso que publicamos a imagem das pessoas que dão, para que outros se revejam nestes gestos e possam fazer o mesmo”.
O caso de Virgínia uma ex-reclusa
Virgínia é o produto de uma família desestruturada. O pai morreu quando tinha dez anos, a mãe caiu numa cadeira de rodas pouco depois, os três irmãos e a irmã desde cedo se envolveram em atividades criminosas. Já todos cumpriram penas de cadeia, por crimes relacionadas com tráfico de droga.
A certa altura Virgínia achou que o casamento era a melhor forma de escapar à miséria que conhecia desde pequena. “Pensei mal, o pai da minha filha punha-me a atrair homens para serem roubados. Eu não fazia nada, mas atrai-os para ele os roubar”, confessa. “Casei muito nova e deixei-me levar, sentia-me obrigada porque ele precisava para consumir”, afirma, “apesar de eu nunca ter consumido”, acrescenta. Virgínia reconhece agora o mal que causou às pessoas. Cumpriu quase oito anos de uma pena de 14 anos e meio e sente que pagou pelos seus erros.
Durante esse período perdeu o acesso à filha. “Ela ficou com a avó paterna e, no primeiro ano ainda a levavam às visitas, depois foi uma luta”, lamenta. Assegura que sempre mandou dinheiro à filha, “trabalhei sempre, enquanto estive presa e às vezes passava mal na cadeia para poder mandar os poucos euros que ganhava para a minha menina”.
Quando foi libertada, em setembro, o sonho era arranjar uma casa e um emprego para poder recuperar a filha. Ao tribunal que a colocou em liberdade condicional teve que dar a morada de casa da mãe, porque não tinha outra. “Mas não podia voltar para lá. A minha mãe morreu pouco tempo antes de eu sair de Santa Cruz do Bispo. Naquela casa eu só tinha os meus irmãos e se me metesse lá, num instante estava de novo no mundo do crime”.
O caminho da reinserção é difícil para alguém na situação de Virgínia. A solução que lhe apontaram era uma casa de acolhimento, “mas dessa maneira não ia conseguir ter a minha filha”. Surgiu Filipe, o atual companheiro e juntos conseguiram arranjar uma casa, na qual, apesar de ser pequena, não tinham nada para pôr. “A primeira noite dormimos no chão, nem cobertores tínhamos”. Filipe também teve um passado “complicado”, mas há mais de 18 anos que se afastou do mau caminho. “Conhecia-o de há muito anos, mas quando olhava para ele achava que dali só vinham problemas, mas ele mudou e está a ajudar-me”, reconhece Virgínia.
No IEFP e na Segurança Social deixou claro que não queria o RSI, que o que queria era trabalho. “O RSI é para quem não pode e eu posso e quero trabalhar”, reclama. Acabou por ter que aceitar o rendimento mínimo, porque correram com ela dos trabalhos que lhe foram arranjando. “Trabalhei três semanas no Lar Rainha Leonor, mas quando a Misericórdia soube que eu tinha estado presa correu comigo. Custou-me muito, eu gostava de trabalhar com os velhinhos”, queixa-se. Voltou a tentar, numa fábrica de calçado, foi mandada embora ao fim de três dias, “mais uma vez, descobriram que eu tinha estado dentro”.
De outra vez, “numa entrevista para trabalhar na EB 1 de Creixomil, estava tudo muito bem, até chegar à parte do registo criminal, nessa altura já não interessava.” “Na verdade, não há nenhuma reinserção social, cada um tem que se virar”, crítica. “O IRHU tem tantas casas vazias, mas não sei para quem são”, atalha Filipe.
Nas instituições há quem reconheça o drama humano e a incapacidade de ajudar oficialmente, foi uma destas pessoas que encaminhou Virgínia para a associação “Ajudar o Próximo” que por sua vez pediu a colaboração do “Servir sem Olhar”. “Foi assim que consegui tudo o que tenho em casa”, relata Virgínia. A sala ainda está um pouco despida, tem um sofá uma pequena mesa e uma televisão. Na cozinha há um fogão, um frigorifico e até um micro-ondas, além de uma mesa de refeições com bancos. Os dois quartos estão mobilados, um deles preparado para receber a filha de onze de anos, “para quando ela vier passar a primeira noite aqui a casa.”
Jorge Santos aponta este como um exemplo em que era preciso agir em tempo recorde. “Quando fomos contactados pela Ana Alpoím, da ‘Ajudar o Próximo’, percebemos que esta pessoa ou recebia ajuda ou corria o risco de voltar ao mundo do crime de que quer fugir”, sustenta. Virgínia reconhece que se tem o frigorifico cheio foi porque o “Servir sem Olhar” o encheu. “Estavam a tomar banho com água fria. Fui pedir a um amigo que tem uma loja e que já lá foi colocar uma botija de gás”, diz Jorge Santos, mas vai adianta, “isto é para o primeiro mês, porque nós vamos-lhe arranjar trabalho e ela vai deixar de precisar”.
Virgínia está revoltada pela falta de oportunidades, mas as coisas boas que lhe têm acontecido, por via do “Servir sem Olhar”, dão-lhe uma esperança renovada de que vai endireitar a vida e recuperar a guarda da filha.
Jorge Santos confirma que o “Servir sem Olhar” quer ser “uma resposta rápida, quando as pessoas estão com a corda na garganta e não têm mais para onde se virar”.