O Asilo de São José e José Miguel Fischer Cruz, neto materno da falecida soprano Hannelor Fischer Cruz, têm processos cruzados no Tribunal de Braga, relacionados com denúncias acerca das condições dos idosos residentes na instituição e alegadas responsabilidades pessoais e coletivas do lar na morte da famosa professora de música de ascendência austríaca, vitimada por covid-19. Num caso, Fischer Cruz ainda aguarda para saber se será ou não julgado, enquanto noutro o asilo e o provedor esperam pela marcação do seu julgamento.
Num dos casos, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deporá por escrito, a pedido de um dos intervenientes nas lides judiciais, José Miguel Fischer Cruz, uma vez que pretende ser esclarecido se tinha conhecimento dos principais contornos do problema quando recebeu, no Palácio de Belém, o provedor do Asilo de São José, José Luís Cunha, na sequência da audição de outros provedores sobre a forma como estavam aquelas instituições a reagir à pandemia covid-19 e às recomendações da Organização Mundial de Saúde.
As situações noticiadas inicialmente em tempo real por O MINHO e depois replicadas pelos principais órgãos de comunicação social nacionais estiveram sempre centradas na morte de Hannelor Friederike Andromache Fischer Cruz, aos 77 anos, a 25 de março de 2020, no Hospital de Braga, quatro dias após dar entrada, em estado muito crítico, oriunda do Asilo de São José. O caso deu origem às acusações mútuas, no Ministério Púbico, com ambas as partes a considerarem-se caluniadas, quer o neto da septuagenária, quer a instituição e o seu provedor.
De um lado, encontra-se José Miguel Rodrigues Fischer da Cruz Costa, do outro estão o Asilo de São José e o seu provedor, José Luís Tavares Cunha, sendo que enquanto o neto da soprano e docente musical Hannelor Fischer Cruz garante ter provas irrefutáveis quanto a todas as acusações de alegada negligência do lar bracarense, que vinha fazendo ainda antes da morte da avó, a instituição e o provedor sustentam que desde o falecimento daquela utente foram alvo de uma série de acusações que afirmam não terem qualquer fundamento.
Depois de ter ilibado pelo Tribunal de Instrução Criminal de Braga, por considerar que as suas denúncias, embora de forma temerária, eram fundamentadas, José Miguel Fischer Cruz foi alvo de uma nova acusação particular, logo acompanhada pelo Ministério Público, por alegado crime de ofensa a pessoa coletiva. Por seu lado, Fischer Cruz processou o Asilo de São José e o provedor, José Luís Cunha, por alegado crime de difamação com publicidade e calúnia, só que neste caso a sua acusação particular já não foi acompanhada pelo MP.
O caso da morte por covid-19
José Miguel Fischer Cruz foi quem na sequência da morte por covid-19 da sua avó materna denunciou não só o caso particular da sua parente, como as situações genéricas em relação ao enquadramento clínico do Asilo de São José relativamente à pandemia, começando por revelar a sua posição em O MINHO e não poupando nas críticas ao tipo de gestão do lar de idosos. As acusações foram sempre negadas pela instituição, através do provedor, José Luís Cunha, de uma forma veemente, assim como pela diretora técnica, irmã Maria Luísa Silva.
O neto da soprano Hannelor Fischer Cruz, cuja família fugiu para Portugal dos horrores da II Guerra Mundial, não perdoa aquilo que considera ter sido negligente, no caso da sua avó, isto é, o ser evacuada numa situação de emergência para o Hospital de Braga em estado muito crítico, quando afinal, segundo José Miguel Fischer Cruz, tinha sintomas de covid-19 em 16 de março de 2020, uma semana depois de os lares estarem encerrados. O neto alertou a instituição para os problemas da idosa logo no dia 19, mas apenas dois dias depois foi transferida de urgência para a unidade hospitalar, “só que era tarde de mais, nessa data, já pouco ou nada havia a fazer”.
“Mascararam a situação, alegando desde sempre que era um mero quadro febril que ali se vivia, entre metade dos utentes, quando já toda a gente sabia tratar-se de um surto de covid-19, mas não atuaram a tempo e horas, como especialmente lhes competia, quando não só podiam, como até deviam ter evitado várias mortes, como a da minha avó, isto em contraste com o que se passava em instituições análogas mesmo aqui em Braga”, argumenta Fischer Cruz.
Asilo de São José alega “campanha de difamação”
Mas o Asilo de São José é que não aceita minimamente tais críticas, afirmando desde a primeira hora, logo num comunicado de imprensa, que as afirmações de José Miguel Fischer Cruz são destituídas de qualquer base factual, afirmando-se mesmo vítimas, quer a instituição secular, a mais antiga de Braga, quer os seus principais responsáveis e todos os colaboradores. Por isso, pretende que o neto de Hannelor Fischer Cruz seja julgado por ofensa a pessoa coletiva, acusação que já contestou, aguardando decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Braga, a proferir após as férias judiciais de verão, a fim de determinar se será ou não submetido a julgamento.
Segundo a queixa apresentada pelo Asilo de São José contra José Miguel Fischer Cruz, o neto da professora de música “desenvolveu uma grande campanha de difamação do bom nome e prestígio da instituição, através de meios de comunicação de grande audiência em todo o país e em outros países, intervenções públicas em que imputa, falsamente e sem qualquer prova, negligência, no apoio e no tratamento à sua avó, o que constitui uma afirmação falsa e difamatória, propagando factos inverídicos capazes de ofender a honra, a credibilidade, o prestígio e a confiança da população, nomeadamente da comunidade em que se insere”.
Pela segunda vez consecutiva, o Asilo de São José quer ver agora sentado no banco dos réus José Miguel Fischer Cruz, que, por sua vez, se diz ele próprio ter sido vítima de difamação, a partir do primeiro comunicado de imprensa emitido pela instituição. Porém, os responsáveis pelo lar não desarmam, referindo, pelo contrário, que Fischer Cruz “preferiu dar espetáculo, para os cinco minutos de fama, tudo em desonra desta instituição”.
“No desenvolvimento da sua atividade o Asilo de São José é auxiliado por freiras da Congregação das Irmãs Franciscanas e Hospitaleiras da Imaculada Conceição, sendo que uma delas, a irmã Maria Luísa Silva, sua atual diretora técnica, abnegadamente, com as demais religiosas e funcionários, cuidam com desvelo e carinho dos idosos acolhidos, de modo a proporcionar-lhes bem estar”, defende a insituição.
Lar de Braga confirma utente infetado mas diz que “contraiu no hospital há oito dias”
Segurança Social exigiu melhor alimentação
A Segurança Social durante uma ação inspetiva ao Asilo de São José, no dia 13 de março de 2020, sem qualquer aviso prévio, tendo concluído “não haver qualquer elemento apurado que configure mau trato”, mas, por outro lado, “foi destacado um menor rigor na elaboração dos cuidados nutricionais, evidenciado na leitura das ementas, porque naquela data apresentavam pouca variedade nas dietas diárias”, pelo que fora feitas “recomendações adequadas à retificação e melhoria deste aspeto em particular”, pode ler-se no relatório.
Hannelor Fischer Cruz, já em 04 de fevereiro de 2020, acompanhada de um seu advogado, tinha confirmado, em declarações à PSP de Braga, que “a alimentação deveria ser mais cuidada”, até pela idade e das doenças do grupo de utentes em que a própria se incluía. Afirmava, então, que “estas pessoas não deveriam ter uma alimentação de arroz acompanhada por uma fatia de fiambre, ou de uma salsicha, ou de um ovo estrelado, deveria ser mais variada e rica”, sendo que “as sobremesas baseiam-se na fruta da época, sendo durante muito tempo servida a mesma sobremesa”, queixando-se ao neto que “aqui nunca comemos bananas ou morangos”.
Segundo o relatório, enviado pela Segurança Social de Braga ao Ministério Público, “foi observada uma ementa que evidenciava uma alimentação pouco rica em nutrientes (ovos, salsichas, etc.), confirmando-se, assim, a veracidade dos factos reportados na denúncia”, tendo havido, dois anos antes, uma visita de acompanhamento técnico, em 23 de fevereiro de 2018, na sequência da qual “procedeu” o Asilo de São José “a correções e concretamente ao nível do quadro de recursos humanos”, já constatadas pelos técnicos da inspeção.
Além das comparticipações mensais que recebe da Segurança Social de Braga, para a sua Estrutura Residencial de Idosos, no caso de Hannelor Fischer Cruz era paga uma mensalidade 850 euros, mas esta utente nunca aceitou “pagar por fora” qualquer “donativo” de 100 euros mensais, ao contrário da sua colega de quarto, situação que adicionada às suas chamadas de atenção perante aquilo que achava deveria ser melhorado, provocou ainda antes das denúncias formais, problemas com a diretora técnica, irmã Maria Luísa Silva.