A canção que ficou no ouvido há uns anos convidava-nos a ir ver os aviões, mas o que muitos lisboetas desejam é que eles deixem de passar tão perto das suas vidas.
São onze da manhã e o pátio da escola Manuel da Maia, em Campo de Ourique, é sobrevoado por aviões a cada três minutos, às vezes menos. Nem a algazarra típica do recreio de uma escola com cerca de 300 alunos abafa o ruído de tão próxima passagem.
“A minha rotina normal já é interromper o discurso”, diz, resignado, o diretor do agrupamento escolar.
“Há determinadas horas do dia em que não conseguimos dizer uma frase seguida sem que tenhamos de nos interromper e outra vez voltar ao raciocínio, porque são períodos muito intensos de tráfego e ruído sobre a escola”, descreve Luís Mocho, notando que “para quem tem aulas no exterior ainda é pior”.
Não é o caso de Ana Santos, professora de Português e Inglês, mas ali ninguém está imune ao impacto.
“Quando eles [os aviões] estão a passar, nós temos que parar de falar, porque, se continuamos a falar, as crianças não nos conseguem ouvir”, relata, estimando que, numa aula, isso aconteça “duas, três” vezes.
As crianças “já não estranham”, mas é uma situação que provoca desconcentração, “porque se quebra o que se estava a fazer” e há que “retomar tudo de novo”, assinala.
São várias as zonas de Lisboa que estão no chamado corredor de acesso ao aeroporto. A Lusa visitou algumas – Campo de Ourique, Campolide, Avenidas Novas, Alvalade – e também Camarate, no concelho de Loures.
As associações estimam que o ruído dos aviões afete quase 400 mil pessoas, que contestam sobretudo os voos noturnos e rejeitam a ampliação do Aeroporto Humberto Delgado, enquanto o novo não for construído.
Os voos “começam muito cedo, muitas vezes por volta das quatro, quatro e meia da manhã e terminam muito depois da meia-noite”, conta Clementina Garrido, da comissão de moradores do Bairro da Calçada dos Mestres, em Campolide.
De acordo com a lei, só excecionalmente pode haver voos entre a meia-noite e as seis da manhã.
Porém, há alturas em que a exceção vira regra. Foi o caso em agosto, como divulgou a associação ambientalista Zero.
No bairro histórico e exclusivamente residencial da Calçada dos Mestres, com 270 casas que vibram à passagem dos maiores aviões, vindos dos Estados Unidos ou do Brasil, “não há descanso possível”, resume Clementina.
Perante o anúncio da ampliação do atual aeroporto, que aumentará o fluxo de 38 para 45 voos por hora, a comissão de moradores decidiu avançar com uma petição por uma redução do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) para quem vive nas zonas do corredor de acesso – uma compensação pelo “som constante que é um inferno para os moradores”.
Ana Alves de Sousa recorda que o ruído que havia há 58 anos, quando foi morar para o Bairro Azul, nas Avenidas Novas, era “ridículo” comparado com o de hoje.
“Não podemos ir às varandas, porque é uma poluição horrorosa, é um barulho horrível. Temos que estar com as janelas fechadas, porque com as janelas abertas […] não se consegue estar dentro de casa. É uma vida um bocadinho enclausurada, hoje em dia estamos fechados nas nossas próprias casas”, lamenta.
Ana, que integra a comissão de moradores do Bairro Azul, diz que “é insuportável” sobretudo à noite, afetando o sono de crianças e adultos.
“Os aviões voam praticamente a noite toda, de dois em dois ou três em três minutos passa um avião e, às tantas, as pessoas acordam às quatro da manhã e depois não conseguem dormir mais […]. Isto é um problema de saúde pública”, classifica.
Maria Antónia Moura vive no Bairro Azul há 50 anos e, por isso, sabe “muito bem a evolução, para pior”, do movimento aéreo sobre a cidade de Lisboa.
“Não é só o barulho, é também as luzes […]. Se não tivermos os estores todos corridos […], entram pelas nossas casas ainda antes de vermos os aviões”, relata.
E não lhe venham falar em reforçar os vidros: “Quero ter a janela aberta, quero ver o jardim, quero ver os passarinhos, quero ver a quinta, quero ver as árvores. Não quero estar fechada em janelas duplas ou triplas”.
O silêncio é fundamental num local de culto, mas, quando a Mesquita Central de Lisboa se instalou no Bairro Azul há 40 anos, os aviões já passavam por ali.
Esse facto não deixa de ser um hábito incómodo, que “perturba especialmente durante as orações”, reconhece David Munir, o imã da mesquita.
“Eu não posso parar de recitar, passando avião ou passando seja o que for. As pessoas é que, durante a passagem do avião, acabam por não ouvir todo o versículo”, lamenta o ‘sheik’, que, como muitos dos entrevistados com quem a Lusa falou, está sempre ligado às páginas com informações sobre voos e tem um alargado conhecimento sobre rotas, aparelhos e corredores aéreos.
Para a oração fúnebre, realizada no pátio aberto da mesquita, o imã já desenvolveu “técnicas” especiais: “Quando pressinto que vem um avião, prolongo um pouco […], deixo passar o avião e depois é que pronuncio ‘Allahu akbar’ [Alá é grande], para as pessoas saberem que estamos numa outra posição”.
Luís Rebelo dá graças por trabalhar fora de Camarate, onde vive há 40 anos, num apartamento a dez metros da dupla vedação que cerca a pista do aeroporto, com placas a avisar: “Área restrita acesso interdito.”
O maior problema são as folgas e os fins de semana. “O meu sábado de manhã é passado de janelas e persianas fechadas, para diminuir o barulho. Já tenho janelas com vidros duplos, mas, mesmo assim, ainda não é o suficiente para conseguir estar em casa sem estar incomodado.”
Já nem tenta adormecer antes da uma da manhã e conta que “a vida inteira de noites mal dormidas” tem efeitos no trabalho, que inclui atendimento ao público: dificuldades de concentração e em perceber o que as pessoas querem e uma propensão “um bocadinho maior” para a falta de paciência e a irritação.
Nada de estranhar, diz o médico psiquiatra Miguel Vasconcelos, coordenador do Centro das Taipas, inquilino do Hospital Júlio de Matos, em Alvalade.
Se para qualquer pessoa a lista de efeitos do convívio rotineiro com o ruído dos aviões é grande – “insónias, ansiedade, depressão, doenças cardiovasculares, AVC [acidentes vasculares cerebrais], ‘stress’, zangas” –, para os utentes de um hospital psiquiátrico mais ainda.
“Obviamente que [para] uma pessoa que está a curar uma situação aguda ou crónica de doença mental, este fator de ‘stress’ constante é um entrave a uma recuperação mais rápida e mais eficaz”, assinala.
O barulho perturba o sono, mesmo que não tenhamos consciência disso.
“Isso tem consequências, sabemos que uma noite de sono é fundamental para a reparação do organismo. As pessoas dormem mal, […] a tensão arterial sobe, o controlo da diabetes é mais difícil, aumenta-se de peso, há cansaço, há desconcentrações”, enumera, aconselhando “mais cuidado” na decisão de ampliar o aeroporto, que “vai agravar” uma situação que já “não está bem”.
Estudante-trabalhador na Universidade Lusófona, no Campo Grande, Gonçalo Oliveira confirma o impacto dos aviões na concentração e na qualidade do estudo.
Porém, sendo “desconfortável”, os estudantes sabem que o barulho “é parte da casa” que escolheram.
O mesmo acontece com quem frequenta e trabalha na Biblioteca Nacional, do outro lado do Jardim do Campo Grande.
“Quem cá está todos os dias nem sente já” e “os leitores já estão familiarizados” com a rotina da aviação, observa Maria Carla Araújo.
Realçando que o ruído não se nota tanto na sala de leitura, a funcionária da Biblioteca Nacional destaca que são os eventos organizados noutras alas, como os concertos, que sofrem o maior impacto.
Já passa da meia-noite, hora a que não deveriam, por regra, realizar-se voos, quando Catarina Grilo recebe a Lusa no seu apartamento em Alvalade.
“É inacreditável como é que temos 380 mil pessoas aqui em Lisboa e nos arredores a ser afetadas por este ruído e é como se nada se passasse”, critica, depois de ouvir passar um avião, vindo de Luanda.
Catarina integra a plataforma “Aeroporto fora, Lisboa melhora”, que exige rapidez na construção da nova infraestrutura e, até lá, a limitação do tráfego aéreo na Portela.
“Aumentar a capacidade aeroportuária em 20% vai fazer com que tenhamos voos em menos de cada dois minutos. Isto não é sustentável para ninguém, com todo o impacto que há, não só nos moradores, mas nos trabalhadores, nos estudantes, nos utentes dos hospitais, nos centros de saúde, nas instituições universitárias, mas também nos espaços culturais”, elenca.
Catarina junta o impacto olfativo ao auditivo e ao visual, dizendo que o cheiro a combustível a impede de arejar a casa e de usufruir do espaço público.
“É o cheiro a combustível de avião, que é distinto do cheiro do diesel dos carros ou da gasolina e que causa impacto na saúde”, descreve, lembrando os danos causados pelas partículas que resultam da combustão.
É meia-noite e meia e umas 50 pessoas fazem fila para o táxi no Aeroporto Humberto Delgado. O painel das partidas e chegadas não engana: pelo menos cinco voos chegarão quando ainda não forem seis da manhã e outros tantos partirão antes dessa hora.