É da freguesia da Pousa, em Barcelos. Emigrou ainda jovem com a família para Londres, no Reino Unido, mas já levava o ‘bichinho’ da ciência, que ganhou durante a infância vivida no meio da natureza. Licenciou-se em ciências forenses e fez mestrado em Medicina e Bioquímica Cardiovascular. Depois seguiu-se um doutoramento internacional em Regeneração Cardiovascular e Nanotecnologia, pelas Universidades de Oxford (Reino Unido), Coimbra e Kuopio (Finlândia). Nesse âmbito, em 2012, com 26 anos, ganhou a medalha de prata dos prémios Science, Engineering and Technology (Ciência, Engenharia e Tecnologia), atribuídos pelo parlamento britânico. Desde então, é procurada pelo Governo britânico – e outros, como o dos Estados Unidos – para dar aconselhamento científico. Diretora científica da organização Blind Veterans UK (Veteranos de Guerra Invisuais), está prestes a abrir um instituto cuja projeto foi elogiado por Bill Gates. Na próxima quinta-feira, torna-se numa das mais jovens professoras catedráticas no Reino Unido. O MINHO esteve à conversa com a cientista Renata Gomes, que mantém uma profunda ligação com a sua terra Natal.
Fala-nos da tua nomeação para professora catedrática pela Northumbia University no Reino Unido.
No Reino Unido ser professor catedrático é muito complicado. Temos que ser nomeados a nível nacional e internacional, temos que ter pelo menos sete professores internacionais [a aprovar]. Parecem quase as nomeações para o Prémio Nobel (risos). Depois, tem que ir aos senados da Universidade e ter um voto unânime, basta haver um contra e pára tudo. Deram-me o título por duas razões: pelo trabalho de investigação em veteranos e medicina militar, mas também pela investigação biomédica sobretudo na regeneração dos tecidos que é no que eu trabalho desde 2007.
Tornares-te professora catedrática aos 35 anos é um feito.
A cerimónia vai ser feita de propósito no dia 24 de junho, porque no dia seguinte, 25, vou fazer 36 anos e, assim, passo a estar na lista de professores catedráticos muito jovens. A cerimónia [presencial] era para ser em março, mas foi sendo adiada por causa da covid-19 e depois percebemos que não iria haver cerimónia este ano e decidiu-se fazer online. A ‘lecture’ inaugural vai ser apresentada pela baronesa Grey-Thompson e pelo senador dos Estados Unidos John Boozman.
“É raro conseguir ser professor catedrático antes dos 45 anos”
Que impacto tem esta nomeação na tua carreira?
Em termos de carreira académica, é o máximo que conseguimos. O que significa – e é muito importante para mim – é não só o reconhecimento do nosso trabalho, mas também um selo de qualidade, o que ajuda o instituto que estamos a abrir (por causa da covid tivemos atrasos na construção do edifício). Muitos dos beneméritos, filantropos e instituições que doaram para a nossa investigação percebem que estão a apostar na nossa qualidade. É muito complicado conseguir o estatuto de professor catedrático.
Entras para um núcleo restrito de jovens cientistas?
Sim, até aos 35 anos todos os cientistas são considerados jovens investigadores. É normal a partir dos 45, 46 anos conseguir ser professor catedrático, mas antes não é muito comum, é raro.
Nasceste em Barcelos, na freguesia da Pousa. Como é que foi a tua infância?
Nasci no Hospital de Barcelos – hoje ainda existe o hospital, mas não a maternidade. Do que me lembro, a minha infância passei-a no meio do campo, descalça – adoro andar descalça, mas não dá jeito nos laboratórios (risos) – a correr de um lado para o outro. E fui a primeira da minha geração: a primeira neta, a primeira sobrinha, a primeira tudo, por isso os meus avós sempre me trataram como se fosse um rapaz. Eu dizia que queria ir cortar árvores ou ir à caça com eles e levavam-me. Nunca houve o ‘vai brincar com bonecas’. Três dos meus quatro avós continuam vivos e dos meus bisavós conheci três. E todos me tratavam como se não houvesse diferença. Por ser rapariga nunca me disseram: “Não faças isso, não vás à caça com o avô, não trepes as árvores”. Eu era sempre curiosa, fazia tudo e mais alguma coisa. Tive sempre uma infância muito ativa.
Fizeste a escola primária em Barcelos?
Sim, na Pousa. Lembro-me que na escola era muito curiosa. Os professores gostavam e eu percebi como funcionava o sistema da escola. Sempre aprendi rápido e às vezes era um bocado aborrecido, porque as outras crianças demoravam mais tempo. Mas percebi que a escola é um sistema: temos que fazer o que os professores mandam, tirar as notas, para depois fazermos o que querermos. E era isso que eu fazia. Fazia tudo o que os professores mandavam. Depois ia chateá-los nos intervalos, perguntar coisas, e eles não se importavam. Nunca mais me esqueço que uma professora até me disse: “Se quiseres eu trago-te uma revista que tenho da universidade para tu veres”. Era uma jovem professora de Ciências. E eu lembro-me que a revista falava de geografia, geologia, como achavam que os continentes eram todos um e depois quebraram. E eu: “Ó professora, e se a galáxia fosse a mesma coisa, os planetas eram todos a mesma coisa e depois explodiu?”. E a professora só se ria e disse: “E então, nunca se sabe. Só tens que fazer as experiências para comprovar que isso é verdade”. Ela disse-me: “Não te esqueças, um dia que comeces a publicar os teus artigos nas revistas científicas avisa a professora”. Entrei em contacto com a escola para ver se existem registos, para ver se consigo encontrá-la, porque já foi há vinte e tal anos, para lhe mandar uma cópia dos artigos.
Pode ser que ela veja esta entrevista e te descubra.
Se a professora ler a entrevista que entre em contacto.
“Sempre me preparei para a discriminação de género, mas com o que tive sempre problemas foi com a discriminação da idade”
Foi aí que nasceu o gosto pela ciência?
Foi desde pequena. Andava sempre no meio do campo. Os meus tios dizem-me que quando eu tinha 3 ou 4 anos – na altura era comum andar à caça dos pássaros com aquelas espingardas de chumbo – e eu apanhava os pássaros e perguntava ao meu avô se o pássaro estava morto e pedia permissão para ver o que se passava lá dentro. Era sempre assim desde criança. Nas vindimas, há fotografias minhas quase a cair dentro dos pipos, porque eles metiam um fermento nas uvas esmagadas, ficava tudo branco e eu queria ver o que era. Com o tempo, o experimentar e o perguntar-me levaram-me em direção à investigação e às ciências médicas.
A seguir à primária vais logo para Inglaterra?
Ainda morei um ano e meio na França e depois fui para a Inglaterra. Fui de viver no campo para uma das maiores cidades do mundo: Londres. Mas aí já tinha acesso a livros, era fácil arranjar cartão da biblioteca e não tinha problema que o livro fosse inglês. A diferença do campo para a cidade não foi muito má para mim como jovem, porque nessa altura já estava mais interessada nos livros, no conhecimento. Fazia atletismo, salto com vara. Por isso, entre escola e atletismo, a vida era praticamente toda preenchida.
Quando vais para a universidade já vais na perspetiva da ciência forense?
Sim. Quando eu tinha três anos tive um apêndice rebentado e fui operada de emergência. A operação foi complicada e parece que quando eu estava a acordar disse que queria ser médica da clínica do dr. Jardim, que faleceu entretanto e que foi quem me operou, numa clínica privada em Braga. Começou daí. A minha família conta-me sempre isso. Antes da universidade já sabia para o que queria ir.
Com o teu trabalho na área forense, quando começaste a ganhar visibilidade toda a gente pensava que eras tipo CSI [série de televisão]?
Sim, todos começámos a carreira por baixo. E quando comecei, o meu trabalho era CSI, mas não é como se vê na televisão. Um teste de toxicologia demora 12 horas. Quando chegávamos a cenas de crime, era fatos de cima a baixo e andávamos lá de joelhos horas e horas, não era com o cabelo solto nem nada disso. Quando comecei, comecei de baixo, porque não tinha amigos aqui e ali. Trabalhávamos como agora vêem as pessoas a trabalhar na covid: com máscaras, aqueles fatos. Tínhamos sempre os nossos nomes escritos à frente e atrás, porque não sabíamos quem era quem com aquele equipamento todo. Chegava a estar 11, 12 horas de joelhos a tirar amostras de sangue daqui e dali, a fazer desenhos e mapas. Não era só fazer autópsias, fazíamos de tudo. Para nos tornarmos especialistas, primeiro temos que saber de tudo e mais alguma coisa. Uma pessoa é especialista quando teve a oportunidade de fazer todos os erros possíveis. Temos que perceber como tudo funciona e saber quais são os erros, como não repetir e ensinar os outros a não os fazer. Tenho uma equipa grande de investigadores e digo-lhes que o mais importante é comunicar os erros. Um cientista sem problemas não é cientista. Muita da experiência é falar com os outros. Quando um colega diz “eu já fiz essa experiência e não funciona assim” já estamos a ganhar experiência. Às vezes ainda há um bocado de discriminação na base da idade. Já fui muitas vezes discriminada. Já me disseram – e a maior parte das vezes mulheres, o que é ainda mais difícil de aceitar – que era demasiado nova [para determinado trabalho]. Somos preparados para a desigualdade de género, mas posso dizer que até hoje as pessoas que mais me ajudaram foram homens e as que mais me causaram problemas ou tentaram parar na progressão foram mulheres. Sempre me preparei para essa discriminação de género, mas com o que tive sempre problemas foi com a discriminação da idade.
Por falar em seres precoce, ganhas maior visibilidade mediática quando com 26 anos ganhas a medalha de prata dos Science, Engineering and Technology (SET) do Parlamento Britânico, não é?
Sim, já foi quase há dez anos [2012]. Até parece que consigo sentir as rugas a aparecerem quando penso nisso (risos). Sim, foi quando as coisas começaram a ser notadas a nível internacional. No Reino Unido já tinha vários outros prémios. Mas mesmo assim sempre tive aquela coisa: é jovem de mais.
“Não somos políticos, mas somos conselheiros. E somos mesmo mauzinhos. É assim, é assim”
Esse prémio teve muita importância na progressão da tua carreira?
Sim, até porque muito do meu trabalho, da missão da minha equipa e do instituto que está a abrir, é a transformação do conhecimento da molécula para as pessoas e para isso temos que estar ligados com quem está do outro lado, que não são todos profissionais da saúde. E essa exposição mediática ajudou muito, porque as pessoas começam a fazer mais perguntas. Comunicamos cada vez mais com a população geral e as comunidades abertamente e com linguagem mais simples e acessível. Agora com a covid vimos o quão importante é comunicar a ciência.
E dás aconselhamento ao Governo britânico, eles querem ouvir a tua opinião enquanto cientista, certo?
Sim, é uma função que tenho desde jovem, desde que recebi aquele prémio em 2012. O Governo britânico consulta muito os cientistas, especialmente os têm backgrounds diferentes. Por exemplo, eu nasci em Portugal e também tenho nacionalidade inglesa. Não somos políticos, mas somos conselheiros. E somos mesmo mauzinhos. É assim, é assim, não estamos para diplomacia, mostramos provas e evidências. Dizemos o que achamos, mas a decisão não é nossa. Não sou política. Isso é muito comum no Reino Unido e também já fiz para outros governos, como a Alemanha, e nos Estados Unidos faço com muita frequência por causa da medicina militar. Quando a covid começou, quando recebemos os primeiros relatórios, em dezembro de 2019, estava em Washington no Senado. Temos como cientistas o dever de traduzir a ciência para a comunidade.
O teu trabalho com os veteranos está a ser um sucesso e vais agora abrir um instituo que já mereceu elogios do Bill Gates.
Não estava à espera disso, termos sido usados num case-study e ter o Bill Gates a dizer que era “beyond academic brilliance” (para lá do brilho académico). Comecei a ideia do instituto, mas não faço todo sozinha, tenho uma equipa que me apoia e fomos usados para um livro que fala sobre o Reino Unido no pós-Brexit. Agora tenho que cumprir. Se digo alguma é para fazer.
Em relação aos veteranos, é na parte visual onde têm tido mais avanços?
Sim, temos trabalhado muito e tem havido muitos avanços, porque o que havia para a cegueira há cem anos é que havia até há pouco tempo: uma bengala e um cão guia, uns transplantes de córnea e uma reconstrução ocular quando fosse possível. Tem sido isso o que existe nos últimos 100 anos para os cegos. Então pegámos nesse problema, porque conseguimos traduzir praticamente todo o trabalho em regeneração de tecido (porque os olhos também são tecido). Temos grande foco na cegueira, mas também na redução significativa da visão. Cada vez mais trabalhamos na área de deficiências físicas. Na população que trabalhamos é muito raro encontrar um doente que só tenha um problema.
E a tua relação com Portugal, continuas a vir cá regularmente?
Sim. Tenho família em Portugal e as férias em Portugal são muito melhores do que na Inglaterra. É quente e as pessoas são diferentes. Continuo a relação com a Rede de Pequenos Cientistas no Norte de Portugal, mas mais recentemente tive a confirmação do meu engajamento com o Instituto Egas Moniz para investigação multidisciplinar em Lisboa e tenho uma grande fraquinho pelo Museu da Farmácia. Faço tudo e mais alguma para o apoiar. A todos os meus amigos e pessoas que conheço peço que apoiem os museus porque os adoro, sobretudo o da Farmácia. E apoiar os museus é tão simples como levar as crianças a visitar. Podemos apoiar a cultura de muitas formas, não só através de doações e filantropia.