Num ano marcado pela ameaça de um vírus omnipresente, muitas festas, por todo o país, têm sido canceladas ou fortemente limitadas. É sob esta sombra que este fim de semana se ergue o Pinheiro em Guimarães, sinal do arranque das Festas Nicolinas. Na noite de 29 para 30 de novembro, o Pinheiro percorre a cidade, puxado por juntas de bois, seguido por um cortejo liderado pelo Chefe dos Bombos. Os estudantes, novos e velhos, fazem ouvir o toque do Pinheiro, rufando nas caixas e atacando os bombos, ao ritmo marcado pelo Chefe e pela sua “boneca”. Milhares de pessoas acompanham o espetáculo. Em 2020 não haverá nada disto. O Pinheiro será colocado ao alto, no sítio do costume, sem cortejo, longe do olhar público, fora da noite prevista e num horário que poucos conhecem, a bem da saúde coletiva.
As Festas Nicolinas, todavia, são mais do que apenas o número do Pinheiro, como explicou a O MINHO o presidente da Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos, José Ribeiro.
Como é que os “Velhos Nicolinos” montaram a sua sede na Torre dos Almadas, no coração do Centro Histórico?
No final dos anos cinquenta foi constituída a Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães, agora conhecida como “Velhos Nicolinos”, que incluía, nessa época, apenas os estudantes do liceu, ao contrário do que acontece hoje que abarca todas as escolas secundárias. O objetivo desta associação era dar uma garantia que as festas nunca mais acabariam, porque houve anos em que as festas foram interrompidas. Como as pessoas que faziam parte desta associação eram as chamadas “forças vivas” da cidade, ligadas ao poder político, económico e religioso, pediram, na altura, esta Torre dos Almadas para montar a sede. A casa estava abandonada e, é fácil perceber que, pelo poder que tinham, não lhes foi difícil conseguir. Desde essa altura que a sede passou a ser ali.
Qual é o objetivo desta Associação de Velhos Nicolinos?
Esta associação tem ao longo do ano atividades onde congrega todos os associados. Nós temos, ativos, à roda de mil e quinhentos associados. Há uma série de atividades durante o ano, a maior parte delas passa despercebida, mas sempre com a finalidade de unir a família nicolina, congregar os nicolinos. Tempos houve, em que tinha também a função de auxiliar os estudantes mais carenciados, com bolsas de estudo. Ainda hoje a associação atribui prémios aos melhores alunos do ensino secundário. Hoje, já não faz tanto sentido a parte do apoio social, porque há outro tipo de instituições que se dedicam a esses problemas, mas durante muitos anos foi uma função importante. Depois, há um dos números da Festas Nicolinas, as Danças de São Nicolau, que sempre foram organizadas pelos nicolinos mais velhos. É um número que dá muito trabalho e que exige paciência, que falta, às vezes, aos jovens.
Nas Danças de São Nicolau, o José Ribeiro faz de D. Afonso Henriques, há muitos anos?
Eu faço de D. Afonso Henriques há mais de 20 anos. Este ano faria 22 anos. Quem me antecedeu foi o José Maria Magalhães, um grande Nicolino que faleceu recentemente. Ele era o Afonso Henriques carismático das Danças de São Nicolau. O José Maria Magalhães fez pela primeira vez de D. Afonso Henriques em 1972/73, entretanto, as Danças só voltaram a reerguer-se em 1983 e o Magalhães foi o Afonso Henriques até ao momento em que decidiu passar a espada e decidiu passá-la a mim.
É o papel de uma vida?
Sou um ator completamente amador, uma vez no ano, como 90% das pessoas que participam. O que me faz sentir mais orgulho é contribuir para a continuidade de um número nicolino e a responsabilidade ter-me sido endossada por quem foi.
Como é o convívio entre a comissão de cada ano, os jovens nicolinos, e os “Velhos Nicolinos”? Eles usam a Torre dos Almadas para reunir?
Neste momento é excelente. Num passado recente já houve alguns problemas, mas não é agora o caso. Eles usam a Torre dos Almadas sempre que assim o desejam, embora eles tenham outra sede, cedida pela Câmara. Esse local não tem as mesmas facilidades que a Torre e, por isso, é aqui que eles reúnem permanentemente. O nosso apoio é muito importante, porque são miúdos com 16 anos, com uma grande responsabilidade às costas.
A partir do momento que é eleita a Comissão, a sua grande tarefa é angariar os fundos para fazer as Festas. Nem sempre será fácil?
Eles são eleitos na última semana de setembro e o grande desafio é através dos peditórios recolherem os fundos para as Festas. Os peditórios hoje alargaram-se para fora do concelho, chegam a Fafe, por exemplo. Cresceram como as próprias Festas. Os peditórios fazem parte da mística. Se por acaso houvesse um ano em que não fosse preciso fazer peditórios, os estudantes ficariam tristes. O Pinheiro custa muito dinheiro, as juntas de bois custam milhares de euros, é preciso arranjar muito dinheiro. Mas isso nunca é problema.
As Nicolinas assumiram hoje uma dimensão que vai além da importância que tem para os estudantes, é uma marca cultural da cidade e um emblema turístico?
Sim, sem dúvida. As Festas, hoje, principalmente o Pinheiro, são um evento da cidade e que já ultrapassou os seus muros. A Câmara tem noção desta importância e, por isso, apoia. Veja-se o peso que tem o dia do Pinheiro para a restauração na cidade e até no concelho.
Falou-se na possibilidade de classificar as Festas Nicolinas como Património Imaterial da Humanidade, porém, isso foi um pouco ensombrado porque a certa altura disse-se que apelam ao consumo de álcool em excesso. Como é que encara estas críticas?
O livro do estudo que fala disso vai ser lançado no próximo dia 4 de dezembro. Seria o dia destinado ao número das Posses, porém, como este ano não vai acontecer, decidiu-se fazer o lançamento do livro. Uma iniciativa da Câmara Municipal. Para mim é um grande desgosto quando se associa as Nicolinas ao álcool. É verdade que, no ano em que o estudo foi feito, houve alguns excessos em reuniões da Comissão e isso teve de se inverter. Mas, temos de compreender que estamos a falar de jovens. Além disso, estamos aqui numa zona em que o álcool faz parte de todas as festas populares.
E as mulheres, hoje elas reclamam um estatuto de igualdade em todos os aspetos da vida em sociedade. Como é o papel delas nas Nicolinas?
A mulher teve sempre um papel fundamental nas Nicolinas. O cortejo do Pinheiro antes do 25 de abril não levava novos estudantes, só iam os antigos estudantes. As coisas evoluíram, agora, não só se abriu aos novos estudantes como também às mulheres. Eu diria que no cortejo do Pinheiro, atualmente, elas são metade. Depois, há números que, pela sua forma, implicam uma participação diferente de homens e mulheres. As Maçazinhas, por exemplo, só fazem sentido se o rapaz for oferecer a maçazinha à rapariga que espera na janela que previamente enfeitou. As Nicolinas são, todas elas, dedicadas à mulher amada.
O Pinheiro é hoje o número mais conhecido das Festas, mas não foi sempre assim, já houve tempo em que era diferente?
Sim, mas é preciso recuar muito. Hoje, é a dimensão do cortejo do Pinheiro que dá grandeza às Festas Nicolinas. O reencontro que se faz nessa noite é muito importante, com gente que andou na escola em Guimarães a regressar à cidade para rever amigos. O Pinheiro, em boa verdade nem era um número das Festas, ele anuncia o início das Festas. Como, por esse Minho fora, em muitos lugares, se ergue um mastro para anunciar as festas. Atualmente ganhou o estatuto de um número das Festas e, eu diria, muitas das pessoas que participam neste dia nem têm noção do que são as Nicolinas no seu todo.
As Nicolinas começaram por ser para uma elite. Eram reservadas aos alunos do liceu e, antes do 25 de abril, não ia para o liceu quem queria. Como é que se fez a democratização das Festas Nicolinas?
As escolas comerciais e industriais lecionavam até ao quinto ano e essas estavam excluídas, o liceu é que dava conferia o sétimo ano e a possibilidade de prosseguir estudos para a universidade. Só quem andava no liceu é que participava nas Nicolinas. Depois do 25 de abril, com a unificação do ensino, não fazia sentido manter as Nicolinas na Escola Secundária Martins Sarmento (como se passou a designar o liceu). Eu tenho muitos colegas que andaram na Escola Industrial que não podiam ouvir falar de Nicolinas, porque não podiam participar.
A democratização foi pacífica, ou houve gente que resistiu?
Foi gradual e pacífica. Em 1982 foi assinado um protocolo entre todas as escolas para que passassem a fazer parte. Depois do 25 de abril, o liceu continuou a ter predominância, mas quando foi preciso dar o passo foi tranquilo. Claro que o liceu continuou a contribuir mais, durante alguns anos, mas agora isso está completamente ultrapassado.
O que vai ser das Festas Nicolinas neste ano especial que estamos a viver?
As Nicolinas vão sofrer como outras festas emblemáticas por esse país. Claro que Guimarães vive as coisas de uma forma mais aguerrida. Para a população a grande preocupação não são os números das Festas, é o Pinheiro. Claro que para a Comissão não é assim.
E o que é que vai acontecer ao Pinheiro?
Aquilo que queremos é que as pessoas fiquem em casa. A Câmara e a polícia não vão dar facilidades a quem se quiser aproximar. Não vai haver cortejo, o Pinheiro já foi cortado e vai ser colocado no lugar habitual, numa hora não determinada, fora da noite. No máximo estará lá a Comissão. Um momento puramente simbólico.