Junto à estátua do primeiro rei de Portugal, em Guimarães, em frente ao Paço dos Duques de Bragança, do lado oposto da rua, fica “O Henriquino”. Mais do que uma loja de recordações é quase um posto de turismo, com um guia especialmente apaixonada e envolvido com a Cidade Berço, Djalme Silva.
Os turistas sobem a partir do centro histórico e quando chegam ao Paço dos Duques de Bragança, não conseguem ver ainda o castelo de Guimarães. “É aqui o castelo?” – Perguntam metendo a cabeça pela porta d’O Henriquino. Djalme, já perdeu a conta a quantos turistas ajudou ao longo dos 33 anos que leva naquele lugar. “Não, aqui é o Paço dos Duques, um edifício do século XV, que foi morada real e é, hoje, uma das residências oficiais do Presidente da República”, explica a uma turista brasileira que vagueia sozinha. “O castelo é mais em cima, logo ali, por trás das árvores”.
Os turistas agora são poucos, em alguns dias nenhuns. A pandemia arrasou o setor do turismo em Guimarães, Djalme estima que a quebra foi de 70% e nem algum movimento de verão deu para salvar o ano. “Nos dias piores, não se vê ninguém, só aqueles ali à porta”, aponta para o outro lado da rua, onde os funcionários do Palácio dos Duques fumam um cigarro do lado de fora do edifício. “São eles ali e eu aqui, sozinhos a olhar uns para os outros”, lamenta-se. Confessa que se vai aguentando com dificuldades, já teve de fazer adaptações que lhe custaram caro emocionalmente e das quais prefere nem falar. “A renda e as outras despesas do espaço mantém-se, mesmo sem ninguém para comprar”.
Djalme Silva, de 74 anos, é um homem com um percurso de intervenção notável, em Guimarães. A própria loja de recordações e produtos regionais, “O Henriquino”, nasceu de uma vontade de preencher uma lacuna que sentia na cidade. “Na altura trabalhava no jornal e vi, num anúncio, que este espaço se alugava. Imaginei que este era o lugar onde devia haver uma casa como esta. Porque este é um sítio espacial, sabe?” – É uma pergunta retórica, é por ser um lugar especial que por ali passa tanta gente.
Há 33 anos, não era como agora. Portugal não se tinha tornado ainda num dos destinos turísticos mais apetecíveis e quem vinha eram os portugueses. Vinham à procura de encontrar aqueles lugares que conheciam das fotografias nos livros escolares: o Palácio, a estátua do rei e o Castelo. “O Henriquino” já lá estava, nesse tempo em que não havia franceses, alemães, ou americanos e muito menos brasileiros. “Sempre acreditei que o turismo aqui haveria de se desenvolver, é um lugar mágico”, afirma Djalme.
“Pensar que foi aqui que tudo começou!”, Dilma Roussef
Pela loja de Djalme já passaram muitas pessoas ilustres, das artes e da política. Djalme não gosta muito de falar disso, quando por ali andam são apenas turistas, muitas vezes querem passar anónimos e ele faz-lhes a vontade. Mesmo assim, não pode deixar de recordar o dia em que lhe entrou pela loja a Dilma Roussef, na altura em que era Presidente do Brasil. “Pensar que foi aqui que tudo começou!” – Disse-lhe Dilma, de lágrimas no rosto, com os olhos postos na Colina Sagrada.
Enquanto escreveu no Semanário de Guimarães, Notícias de Guimarães, Comércio de Guimarães e Povo de Guimarães, Djalme foi sempre muito incisivo a denunciar o que lhe parecia que ia mal na cidade. Alguns dos temas das suas crónicas continuam bastante atuais na cena política e social da cidade. É o caso de uma peça que publicou a 30 de junho de 1988, intitulada “Comemorações do 24 de junho são de toda a nação”, em que defendia que o dia da Batalha de São Mamede devia ser feriado nacional e o dia da nacionalidade.
Escreveu entre a década de 1970 e meados da década de 1990 e diz que parou porque nunca o fez por dinheiro, mas sim pela vontade de intervir em prol da cidade, “quando comecei a perceber que havia interesses instalados, retirei-me”.
Havia a RTP1, RTP2 e a Televisão de Covas
Na comunicação social também passou pelas duas rádios que ainda existem na cidade de Guimarães, a Santiago e a Fundação e fez parte da rádio Fermentões. Mas, o episódio mais interessante, foi quando fez parte de um núcleo de apaixonados que criou uma televisão local. Nos idos anos 80, a transmissão de sinal de televisão era um couto da estação pública, a RTP, e os portugueses só podiam escolher entre os dois canais desta estação. Mas, no fim daquela década, andava no ar um cheiro a liberdade – o muro de Berlim caiu em novembro de 1989 –, que haveria de mudar tudo em breve. Em outubro de 1992 começaram as emissões da SIC e, em fevereiro de 1993, as da TVI. Contudo, em meados da década de 1980, era a RTP1, a RTP2 e a Televisão de Covas. Pelo menos em Guimarães, porque, na mesma altura, pelo país surgiram outros projetos parecidos.
A Televisão de Covas emitia da montanha da Penha, para que o sinal abrangesse a maior extensão possível de território. Eram duas ou três horas de emissão pirata, como na altura se chamavam as estas televisões. “Passávamos filmes, mas também havia informação. Uma altura houve uma visita ministerial e lá fomos nós entrevistar o ministro. Ele falou para a Televisão de Covas, que remédio”, conta Djalme, com nostalgia desses tempos de aventura.
A aventura terminou quando a RTP fez uma denuncia. “Valeu-nos na altura o Alberto Ribeiro da Silva, que nos aconselhou a parar. O processo acabou por ser arquivado”, recorda.
Djalme fez uma passagem fugaz pela política como candidato à Junta de Freguesia de Azurém, onde nasceu. “Mas rapidamente percebi que também ali havia muitos interesses instalados, por isso não voltei a candidatar-me. Mesmo assim, tive a melhor votação de sempre, do PSD, em Azurém.”
Da sua caneta saíram “mimos” para políticos à esquerda e à direita. Em tempo de campanha para o Parlamento Europeu, escreveu uma resposta a um flyer, em jeito de carta a Mário Soares. A prosa era mordaz, mas suficientemente cuidada para preservar a elegância e não deixar o texto resvalar para o vulgar. Poucas semanas depois, dedicou uma crónica no mesmo estilo a Durão Barroso.
As atividades pelas quais é conhecido, mesmo a loja “O Henriquino”, nunca as fez para ganhar dinheiro. A profissão que sempre exerceu, paralelamente a tudo o que fazia, foi a de desenhador de construção civil.
A mão afinada dá-lhe para mais do que apenas os desenhos a régua e esquadro, é um artista do traço. As suas ilustrações estão à venda na loja sob a forma de quadros e postais. São motivos vimaranenses, vistas do Centro Histórico, o largo do Toural, como ele foi em tempos, o monte Latito, com o Castelo e D. Afonso Henriques de espada em riste. Não diz de imediato aos turistas que é o autor, quando alguém compra um, então faz uma assinatura, “para que levem uma peça única”.
“Aqui não há artigos chineses, são produtos de artesanato nacional e preferencialmente de Guimarães”, afirma.
As gravuras servem de guia quando quer explicar alguma coisa aos turistas que fazem d’O Henriquino um posto de turismo. Pega no desenho a carvão do largo da Oliveira e indica o caminho aos americanos. “Depois vão passar por baixo de um edifício que tem uns arcos e vão ver o largo mais bonito do mundo”, di-lo de uma forma tão convincente que os americanos ficam de boca aberta.
“A Câmara devia ter tudo isto mais bem sinalizado”, crítica, “estamos aqui à beira do castelo e um destes dias veio aqui uma senhora pedir para chamar um táxi para a levar lá. Com as árvores não se vê o castelo daqui e não há nenhuma placa a indicar”. Tem uma ideia muito clara sobre como a cidade devia receber as pessoas, de forma mais acolhedora. “Deviam andar por aí guias que abordassem os turistas e lhes dessem informações, que lhes explicassem como podem fazer para ir de teleférico à Penha, que podem visitar o Museu Alberto Sampaio e o Museu da Sociedade Martins Sarmento. Em vez de andarem só esses por aí a passar multas, punham alguns a fazer relações públicas para o turismo da cidade”.
Tem uma paixão pela música que aprendeu como autodidata, quando lhe ofereceram uma viola na juventude. No tempo que passou pelo Centro de Arte e Recreio, ajudou a fundar as duas tunas académicas de Guimarães, a Tuna Afonsina (masculina) e a Tun’Obebes (feminina). O seu jeito com as palavras ficou registado como autor do hino da Tun’Obebes e também no pregão das Nicolinas de 1989.
O destino ou a providência pareciam adivinhar que um homem assim precisava de um nome que não de esquecesse. Ficou com o nome do padrinho, brasileiro. “Facilitou-me o reconhecimento pela positiva, mas também pela negativa”, diz a sorrir. Às vezes, os assuntos que tratava no jornal mexiam com interesses instalados e chegou a assinar SD (as iniciais de Djalme Silva, ao contrário), para evitar problemas.
Agora tem uma vida mais tranquila à sombra do castelo, de frente para a estátua de D. Afonso Henriques. “Se são brasileiros, mando-os descer, passar para a esquerda no jardim do Carmo, continuar pela rua de Santa Maria, que fica mesmo em frente, atravessar todo o Centro Histórico, até chegarem a um grande largo que tem uma igreja ao fundo, é São Gualter e o largo chamasse: ‘da República do Brasil’. Eles ficam maravilhados!”.