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Depois de ser assaltado na rua por cinco vezes, ao longo dos últimos anos, o ator Bemvindo Sequeira fartou-se e começou a pensar sair do Rio de Janeiro, em busca de maior paz e segurança. A eleição do Presidente da República brasileira, Jair Bolsonaro, no final de 2018, foi a gota de água, impulsionando o artista de muitas telenovelas da Globo, assim como a esposa, para Portugal.
Pelo nome do ator, não são muitos os portugueses que o possam rapidamente identificar. Mas poucos são aqueles, pelo menos de faixa etária acima dos 35 anos, que não se recordarão da mítica personagem “Bafo de Bode”, da telenovela brasileira Tieta.
Pois bem. É o mesmo ator e vive em Braga há quase dois anos. E esta quinta-feira esteve à conversa com O MINHO, confessando-se “muito feliz” por viver na cidade, já se considerando “minhoto” e sem planos para regressar ao outro lado do Atlântico, onde se despojou de todos os bens para ‘embarcar’ a 100% nesta nova aventura.
Bafo de Bode
Mas vamos por partes. Quem é Bemvindo Sequeira? Um ator, humorista, autor e diretor de teatro, cinema e televisão brasileiro que conquistou não só o Brasil, mas também Portugal, com a sua interpretação de um sem abrigo com problemas de alcoolismo e sem ‘papas na língua’, na telenovela Tieta. Aquela que seria apenas uma personagem sem relevo, a surgir uma vez por semana, acabou por se tornar numa das referências das telenovelas brasileiras, ao lado de nomes míticos como Roque Santeiro, Sassá Mutema ou Cadeirudo.
Bemvindo era já um nome bastante conhecido do teatro brasileiro quando, aos 42 anos, resolveu aceitar o convite para ser o Bafo de Bode. Mas o ator poderá explicar melhor através de discurso direto: “Quando tinha 42 anos resolvi aceitar o convite para fazer televisão porque sabia que o sistema não me iria engolir. Sabe, é que a TV é como cocaína para os atores, são convidados para festas, ficam famosos, e se por acaso perdem o emprego, enlouquecem, e eu tinha muito medo disso. Mas já tinha maturidade quando fui para a televisão, por isso não tive problemas”.
“Eu não tinha ainda uma projeção nacional e internacional, já fazia teatro, já era conhecido, e recusava a fazer televisão, achava foleiro, consumo de massas, produto alienante. E muitas vezes eu via os companheiros e tinha esse preconceito, porque era um homem do Teatro. Mas o Bafo de Bode era a alma do povo brasileiro, uma personagem que sabia de toda a podridão local e ameaçava as instituições daquela cidade dominada pelos coronéis”, considera.
Perspicaz, critico e politicamente consciente, é assim também Bemvindo, ou não tivesse sido um dos obreiros da lei que regulamenta os artistas e técnicos no Brasil. Para além da personagem que não tinha medo de ninguém, Bemvindo interpretou ainda outro revolucionário, o Zebedeu, na Rede Manchete, “um cangaceiro bufão” que cantava “trovas de bufonaria”, para além de ter participado em outras novelas que foram exibidas em Portugal, como Kubanacan e Uga Uga.

A vinda para Portugal
Inicialmente, Bemvindo e a esposa pensaram em mudar-se para Petrópolis, uma cidade mais pequena ao lado do Rio de Janeiro, mas o facto de terem de atravessar a rodovia – que consideram inseguro – acabou por mudar os planos. Seguiu-se a ideia de habitar no Sul do Brasil, mas o facto de existirem bastantes preconceitos racistas na região para onde se pretendiam mudar, acabou por fazer esmorecer os planos. “Não quero ser vizinho de racistas”, vincou Bemvindo, a O MINHO.
Mas, puxando a cronologia de vida atrás, Bemvindo sabia que havia um lugar onde poderia morar, até porque teria apoio de familiares. Há seis anos, através de uma feliz coincidência proporcionada pelo Facebook, foi contactado por um primo, o José António, de Santa Marta de Penaguião (Vila Real), desvendando assim toda a árvore genealógica da família. E que o ligava a Portugal.
“Ele foi visitar-nos ao Brasil e eu disse: vamos para Portugal. E a minha mulher respondeu: vamos. Quando li que era o terceiro país mais pacífico do mundo, e sabendo que se fala a mesma língua, com um povo muito cordial, não tive dúvidas de que seria o lugar ideal. Vendemos tudo o que tínhamos e decidimos vir para cá, embora eu ainda tenha contrato com a rede Record, e posso ter de ir fazer uma nova novela lá”, disse Bemvindo, agora com 73 anos.
Porquê Braga?
“Descobrimos que Vila Real era demasiado pequena para o nosso gosto, e Lisboa ou Porto eram muito grandes, então pensámos em Barcelos, mas ainda era pequena. Vimos Guimarães e chegámos a Braga. Gostámos muito da cidade, achávamos que se adequava ao que pretendíamos”, confessa.
Depois de ficar instalado uns dias num hotel da cidade, decidiu arrendar um apartamento num prédio na zona histórica, e confessou-se surpreendido com a atitude do senhorio. “Nem foi preciso assinar logo o contrato, ele me deu a chave para as mãos, sem dinheiro, sem nada”, contou, entre risos, destacando a “boa alma do povo português”.
Agora, passados quase dois anos, Bemvindo está “mais do que adaptado” à vida em Braga, e deixou uma revelação: “Eu não creio que volte mais ao Brasil, porque estou muito feliz. É uma cidade que fica muito próximo da família em Vila Real, com bom hospital, shoppings, supermercados. Só temos a agradecer ao povo bracarense e ao povo português. Escolhemos Portugal, que nos acolheu muito bem, e o Minho, porque já somos minhotos. Já não sou só transmontano, agora também sou minhoto”, constata.
Bemvindo sai às ruas de Braga e é reconhecido, não só por compatriotas mas também por nativos. “Eu saio à rua e algumas pessoas pedem para tirar fotografia, outros cumprimentam mas, independente de ser reconhecido por ser artista, posso dizer que o povo aqui é muito cordial. Me lembra o povo brasileiro de há algumas décadas, antes do consumo desenfreado, da miséria e das desigualdades sociais”.
Bolsonaro e o Chega
Recentemente, o artista marcou presença num protesto anti-Bolsonaro levado a cabo a nível global, que teve repercussão em Braga, discursando em frente ao chafariz da Praça da República, ao lado da Arcada. O ator considerou que o “neofascismo” cresceu muito no Brasil, com espancamento de pessoas, perseguições a artistas e comunidades, “coisas terríveis”.

“Gosto muito do vosso Presidente, é equilibrado e representa todos os portugueses, é sensato e muito hábil, na minha opinião. É totalmente o contrário do nosso Presidente, que é um quadrúpede que não governa, apenas sabe criar sobressaltos. É horroroso”, vincou, confessando que essa mudança também contribuiu para o “exílio” em Braga.
“Juntei isso com a violência urbana e percebi que estava a ficar insuportável. A cultura foi desmerecida, jogada no lixo, [Bolsonaro] retirou verbas da Cultura, da Educação, da Saúde. Alguns podem não concordar comigo, mas é irrespirável ter de conviver com um fascista como vizinho. Agora, todo o mundo ou é comunista ou bolsonarista, não pode ser socialista, liberal ou democrata”, considera.
Bemvindo tem estado atento ao evoluir das novas facções políticas no Parlamento português, com especial atenção ao partido Chega. Confessa que, não só a ele, mas a todos os “brasileiros exilados que são progressistas e democratas”, esta evolução do Chega “preocupa”.
“O Chega preocupa muito e nós temos avisado – cuidado estão a caminhar para um homem similar a Bolsonaro, para a extrema direita. Nós também achávamos que o Bolsonaro era impossível eleger. Vocês preocupem-se e prestem atenção”, aconselha Bemvindo, considerando André Ventura “um lobo em pele de cordeiro que diz não ser de extrema direita”.

“Eu gosto muito do equilíbrio político de Portugal, onde PSD dialoga com PS, e com PCP e Bloco de Esquerda e os Liberais. Este parlamentarismo português me agrada muito, porque a política é a arte do diálogo e isso foi totalmente perdido no Brasil”, finalizou.
Telenovelas em Portugal
Bemvindo foi um pouco cerimonioso quando questionado sobre a qualidade das novelas em Portugal. “Eu não queria muito estar a dizer isso, mas já que pergunta, considero que Portugal ainda tem muito que evoluir para apresentar um produto de qualidade como a telenovela brasileira”, afirma.
Em relação à televisão, Bemvindo considera que o Brasil fez “das novelas a Hollywood brasileira”, destacando-se em todos os aspectos, enquanto Portugal “não investiu”. “A qualidade das novelas portuguesas deixa muito a desejar diante das brasileiras. Gravam pouco no exterior. São quatro paredes fechadas, com cortinas para não se ver o que está lá fora, mas isso tem a ver com dinheiro, patrocínios fortes são necessários para sustentar uma industria audiovisual”, considera.
No entanto, Sequeira deixa a ressalva em relação aos colegas atores. “Falo em relação a figurinos, cenários, não sobre a interpretação. Há um ator português que participou em novela no Brasil, o Nuno Lopes, e eu fiquei encantado. Muito bom, mesmo. Os colegas portugueses estão muito bem, mas a infraestrutura da novela portuguesa, o próprio mercado é muito pequeno”.

Para conseguir o mesmo sucesso do Brasil, na opinião de Bemvindo Sequeira, Portugal teria de produzir novelas rápidas, com 80 episódios no máximo, e vender para Espanha, Marrocos, Argélia, outros países.” E teria de ser pensado muito para melhorar a qualidade de novelas e servir de exportação , porque só o publico interno não sustenta o patrocínio. Mas no Brasil quando uma novela faz trinta pontos, significa 40 milhões a ver a novela e os patrocinadores investem”, explica.
“Mancos nas novelas, mas fortes em literatura”
No teatro, Portugal dá abada ao Brasil, refere o ator, dando o exemplo da preservação de teatro de revista. “A cultura portuguesa é muito boa, as orquestras sinfónicas, os autores novos, as livrarias, essa cultura, os museus, porque a cultura portuguesa não se limita só à música, literatura e televisão”, recorda.
“Nós [os portugueses] somos mancos nas telenovelas, mas somos fortes em literatura, desde Camões, Gil Vicente, Guerra Junqueiro e Pessoa. Fico muito feliz de ver a cultura portuguesa pujante, com as crianças a aprenderem sobre literatura, os grupos de canto, de tradição popular que são mantidos. É tudo muito bom”, finaliza.
Meio milhão de seguidores nas redes sociais
Bemvindo Sequeira, apesar de ter levado décadas até aceitar a evolução do Teatro para a televisão, foi um dos primeiros no mundo cibernético, e há cinco anos que é YouTuber, reunindo perto de meio milhão de seguidores nessa rede social em conjunto com o Facebook.
Mas também acompanha a produção cinematográfica, e considera que Portugal está a perder um comboio que já para em muitas estações europeias – o das séries e filmes.
“Fico impressionado com a desenvolvimento da cinematografia na Catalunha, e creio que Portugal não precisava de muito para desenvolver um bom projeto cinematográfico, pois tem cenários lindos, como mar, montanhas e rios, céu azul, neve, tem todos os cenários para uma boa cinematografia. Acho que Portugal deveria insistir mais no cinema e nas séries. Espanha saiu à frente, a Polónia, a Noruega, vários países, e Portugal tem de arrancar nisto”, considerou.
A terminar a conversa, e questionado por O MINHO sobre se poderíamos alguma vez ver Bemvindo numa série/filme/peça de teatro/telenovela portuguesa, este não negou: “Eu estou aberto a propostas da TV portuguesa e de teatro, nem tanto pelo dinheiro, mas sobretudo para representar e aprender também com a cultura portuguesa. Posso já não subir nos palcos, mas continuo representando nos meus vídeos no YouTube. Apenas me reeinventei na arte de representar”.