O Grupo de Autorrepresentação funciona como um pequeno parlamento, onde têm assento os utentes da CERCIGUI. A presidente da assembleia é a psicóloga Carla França. Por estes dias, os temas ligados à pandemia e ao novo confinamento ocupam uma parte das intervenções, mas também há tempo para falar das eleições.
Quisemos saber como é que a pandemia estava a afetar as pessoas com deficiência, por isso, fomos sentar-nos na assistência desta pequena assembleia. Catarina Fernandes queria começar pela surpresa que tinha preparada para nos receber, mas a psicóloga disse-lhe que isso ficava para o fim. Primeiro vamos tratar de assuntos sérios.
Com uma ajuda da presidente da assembleia, Ana Catarina, de 26 anos, fez a primeira intervenção. Conta que aquilo de que tem mais saudades é de poder ir à rua tomar um café com os amigos. Ana Catarina tem paralisia cerebral, fez o nono ano e tem um discurso muito coerente. É preciso dar-lhe algum tempo, porque as palavras prendem-se-lhe na boca, mas percebe-se que gosta de dar a sua opinião.
Filipe é um moço grandalhão, com a máscaras só se lhe vêm os olhos, que parecem desconfiados. O jornalista é um elemento estranho. Mas quando Catarina França lhe passa a palavra, também tem o que dizer. “Estive doente, foi muito mau. Depois quando fiquei bom, só queria voltar”.
A CERCIGUI passou muito tempo sem qualquer caso de covid-19, até que em outubro apareceram os primeiros casos, no Centro de Atividades Ocupacionais (CAO) e no Centro de Reabilitação e Formação Profissional. “No Lar Residencial ainda não tivemos nenhum caso, o que é extraordinário”, afirma Rui Leite, o presidente da instituição. Rui Leite, este ano, na noite de Natal, depois de jantar com a família, vestiu-se de Pai Natal e foi distribuir prendas aos utentes do Lar Residencial. “Este ano foi especial, eles não podiam ir a casa e nós tínhamos que fazer alguma coisa diferente”, afirma.
O pior foram os meses de confinamento
Catarina Camelo, de 24 anos, acha que o pior foram os meses de confinamento. “Foi uma seca”, resume. Catarina, a certa altura, começa a achar que a sessão está a demorar demasiado e lembra a psicóloga que é preciso telefonar. “Já vai, depois, prometo-te que vamos telefonar, a seguir”.
O maior problema destes jovens, neste período, é o afastamento de pessoas de quem gostam. Em muitos casos, de outros colegas da instituição, que agora deixaram de frequentar. “Tenho muitas saudades dos nossos amigos, do meu namorado”, diz Susana Daniela, de 39 anos.
Foi a falta de contato que fez com que Catarina Camelo passasse por um mau período, durante o primeiro confinamento. Os técnicos da CERCIGUI foram a sua casa, ajudaram-na a telefonar. “Muitos destes jovens têm pais idosos que não dominam ou não valorizam as novas tecnologias de comunicação”, explica Catarina França.
Os utentes são sempre “jovens”
Os utentes são sempre jovens para os técnicos da CERCIGUI. “Como é que os poderíamos chamar? Clientes, soa mal. Utentes, também não soa bem. São sempre jovens”, explica a técnica.
Na verdade, as pessoas com deficiência têm hoje uma esperança de vida maior do que no passado, como o resto da população. Alguns dos “jovens” estão na casa dos quarenta e, um deles, Manuel Paulo já completou 52. José Manuel apresenta-se maldisposto, diz a idade, mas fala com alguma dificuldade e percebe-se mal. O jornalista aponta 44 anos no caderno. Ele discorda, pega na caneta e escreve, “+2”. São 46? Chegam a um acordo e fica tudo bem.
É bom que estas pessoas vivam cada vez mais, mas isso também traz novos problemas, “e eles não gostam de falar disso”, reconhece a psicóloga. “Não é Paulo?”, pergunta a técnica a um utente que passa apoiado num andarilho. “Nem tocar no assunto. Mas é verdade que vamos todos ficar velhos e temos de pensar nisso”, reconhece.
Susana Sampaio, uma utente com trissomia 21, durante o confinamento teve a mãe idosa acamada. Numa altura em que a família continuava a trabalhar, com o Cento de Dia fechado, acabou por ter de ser ela o suporte da mãe. No caso de Susana Daniela, a mãe, com 80 anos, já não é capaz de a ajudar, uma das irmãs teve de deixar de trabalhar para tomar conta dela.
As pequenas coisas do dia a dia que deixaram de ser possíveis
António Carlos, de 44 anos, está preocupado porque se aproxima o dia do seu aniversário, em fevereiro, e não vai poder ir ao restaurante. Filipe concorda que vai ser muito aborrecido. “Vou com os amigos. Carne assada, batatas e coca-cola”, diz o próximo aniversariante sorridente.
Cunha Magalhães é homem de poucas falas. Nem para dizer a idade abriu exceção, limitou-se a concordar ou discordar com as suposições que se foram fazendo. Quando se falou em comida, todavia, ergueu o corpo que tinha prostrado em cima da mesa, assente nos cotovelos. Deixou de olhar por cima dos óculos graduados e fez um sorriso afirmativo. A ideia de sair para ir comer agrada-lhe.
“Em 27 anos, nunca passei aqui um almoço de Natal tão triste. Havia bacalhau e rabanadas, mas faltava qualquer coisa”, recorda a psicóloga. “Foi quase um dia normal”, queixa-se Ana Cristina. “Faltam os beijinhos e abraços”, dizem alguns.
O dia a dia da instituição teve de mudar muito e quase nada é do agrado dos utentes que, mesmo assim, “são muito cumpridores”. Na instituição todos andam de máscara, corretamente colocada, respeitam os circuitos e desinfetam as mãos. Isso não quer dizer que gostam. “Sentimos falta de estar juntos no refeitório e nos intervalos”, queixa-se Pedro, um utente de 30 anos.
Por uma questão de segurança, os intervalos e as refeições são feitas em pequenos grupos, normalmente da sala em que os utentes têm as suas atividades. Isto reduz muito o contato social entre eles, mesmo quando estão na instituição. Sem falar dos que deixaram de vir.
A Susana não estava com o namorado desde março, viu-o um destes dias. A felicidade foi tão grande que ainda transborda quando Carla França recorda o momento.
A redução das receitas por via das mensalidades não cobradas aos utentes que deixaram de frequentar é um dos problemas que a direção liderada por Rui Leite tem de enfrentar. “Além disso não tivemos a campanha do Pirilampo Mágico, que foi cancelada em 2020 e não fizemos a nossa caminhada. Tudo junto é um rombo de cerca de 70 mil euros”, revela o presidente da CERCIGUI.
Para eles tem de ser o melhor
Rui Leite olha para a gestão no setor social com um misto de coração e visão empresarial. “Coração quando estamos ali fora a lidar com eles, mas visão empresarial quando se trata de angariar fundos”, afirma. O lema é: “para eles tem que ser o melhor”. As casas de banho do CAO tem uma tijoleira linda, ficava bem em qualquer moradia. “Podia ser mais barato se fosse branca e lisa? Podia! Mas para eles tem de ser o melhor”, justifica Rui Leite. Não há luxos, mas também não se aceita a ideia de que qualquer coisa serve.
É por isso que a instituição tem de inovar e de se lançar a novos desafios. Recentemente começou a explorar outdoors publicitários, as próprias carrinhas da instituição passarão a ser suporte para publicidade. Está a decorrer uma campanha em que é possível comprar, por cinco euros, uma peça de um puzzle gigante. Quem participa, recebe um porta-chaves e um certificado com o número da sua peça no quebra-cabeças. Quando estiver montado, na parede exterior do edifício, o logotipo da CERCIGUI, com sete metros, vai-se ver da Penha.
Finalmente a surpresa: um saquinho de bolachas húngaras, feitas e embaladas, segundo todas as normas de higiene, na CERCIGUI. Deliciosas.