O Centro de Procriação Medicamente Assistida do Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães, a funcionar desde 2004, já ajudou centenas de famílias com problemas de fertilidade a terem os seus bebés. Em 2014, no ano em que o Centro completou 10 anos, já eram mais de 500, entretanto o número de tratamentos aumentou. Embora não guarde de memória o número, Sofia Dantas, diretora do Centro de PMA do HSOG, acredita que este número pode ter triplicado.
As fotografias de bebés, famílias e crianças na primeira infância preenchem completamente uma das paredes do gabinete da médica. “Já não cabem todos aqui, no gabinete ao lado há mais uma parede como esta”, indica, com um brilho nos olhos.
Sofia Dantas reconhece que é preciso ter paixão para trabalhar numa área em que é preciso a todo o momento gerir as expectativas das famílias. É que as técnicas de PMA têm evoluído bastante, o que fez com que as taxas de sucesso aumentassem, todavia, um grande número de famílias, mesmo com ajuda médica, não consegue conceber.
Em 1998, quando foi criada a Unidade de Medicina de Reprodução, o HSOG oferecia tratamentos de PMA, mas, como não tinha laboratório próprio, o trabalho era feito em colaboração com o Hospital de Gaia. “Fazíamos a estimulação ovárica da mulher, colhíamos os óvulos aqui e esses óvulos eram levados pelo marido para o Hospital de Gaia. Tínhamos uma espécie de cartucheira em que eram colocados uns tubinhos e ele lá ia. Era, no fundo, uma forma de envolver o homem também neste projeto”, recorda Sofia Dantas. Em Gaia era feita a colheita dos gametas masculinos e era no laboratório daquele Hospital que se passava o resto do processo.
Apesar de terem bons resultados, “o volume da procura foi aumentando e, em 2004, verificamos que já não dava para continuar a funcionar daquela forma. Nessa altura criamos o laboratório no HSOG”.
Quando é que se considera que existe infertilidade?
“Diz-se que um casal é infértil, quando mantém relações sexuais desprotegidas, durante um ano, e não consegue engravidar”. Esta é uma definição da OMS, útil porque a probabilidade de engravidar, mesmo quando não há nenhum problema, é mais baixa do que se poderia pensar.
“A probabilidade de uma gravidez espontânea, num casal em que está tudo ‘normal’, não ultrapassa os 20 a 25% por mês”, clarifica a diretora do Centro de PMA do Hospital de Guimarães. Por isso é que é preciso dar tempo, “ao fim de um ano, 80% dos casais conseguem engravidar”.
Há uma série de condicionantes que interferem na possibilidade de uma gravidez, entre as quais “a principal é a idade da mulher”. Essa é a razão pela qual, a partir 35 anos (da mulher), ao fim de seis meses, se o casal mantém relações sexuais desprotegidas regulares e não consegue engravidar, “deve iniciar-se o estudo do casal”.
Aprendemos que a gravidez numa idade avançada da mulher implica riscos para a mãe e para o bebé. Na balança entre os riscos e os benefícios de ter um filho numa idade tardia, Sofia Dantas afirma: “Nesta situação deve-se pesar bem os riscos e os benefícios. Com a idade a probabilidade de malformações fetais vai aumentando”.
Em 2019, a idade média da mãe ao nascimento do primeiro filho, em Portugal, era de 30,5 anos, em 1979 era 23,6 anos. “Esta é uma das principais causas da infertilidade, o adiamento da maternidade”, aponta Sofia Dantas.
Os riscos, embora possam ser controlados, existem. “Para a mãe uma gravidez destas está associada a uma maior probabilidade de ocorrência de complicações como hipertensão e diabetes, para o bebé o aumento da idade materna está relacionado com o aumento das alterações cromossómicas e genéticas. Por isso, estas gravidezes são muito controladas”, tranquiliza.
Apesar de a idade da mulher ter uma influência determinante na fertilidade do casal, a prevalência das causas masculinas é maior no Centro de PMA do Hospital de Guimarães. “Isto porque algumas das causas femininas podem ser tratadas sem recurso a técnicas de PMA. Já a maioria das causas masculinas não se resolvem de outra forma”.
Nesta, como noutras coisas, a natureza é equilibrada, “não há mais causas masculinas que femininas. O que acontece é que os fatores masculinos levam, mais frequentemente à PMA, nomeadamente à fertilização in vitro.”
Quando os espermatozoides não conseguem lá chegar é preciso dar-lhes uma ajuda
No espermograma (análise ao esperma), há uma série de fatores a considerar: o volume (a quantidade), o número de espermatozoides por mililitro, a mobilidade e as formas normais. “Num espermograma a maioria dos espermatozoides tem uma forma anormal. Esses que têm uma forma anormal, são incapazes de fecundar um óvulo”, explica Sofia Dantas.
Considera-se um espermograma normal, quando há acima de 4% de formas normais. “Há 20 anos, quando comecei a trabalhar nesta área, para classificarmos um espermograma como normal tinha que ter acima de 15% de forma normais”, lembra a médica. Esta também é uma razão para a redução da fertilidade dos casais.
Na mulher, os óvulos já existem no momento do nascimento e até antes. Vão-se perdendo ao longo da vida, de forma mais acentuada a partir da primeira menstruação, até não haver mais. No caso do homem, os espermatozoides estão em constante formação, cada um leva dois meses a formar-se, até muito tarde na vida.
Com o avanço da idade do homem, os espermatozoides também vão perdendo qualidade, mas a questão não se coloca como nas mulheres, em que há uma data a partir da qual simplesmente não há mais óvulos.
Além do fator idade, “há um conjunto de outras circunstâncias que contribuem para a queda da fertilidade: o stress, o tabaco, o álcool, as doenças sexualmente transmissíveis… tudo isso tem um impacto muito grande na fertilidade”. Se é verdade que algumas destas coisas já existem há muito tempo, também é verdade que tínhamos filhos mais cedo, num momento em que a fertilidade é maior e em que o impacto destes fatores sobre o organismo ainda é menor.
“Ninguém com quarenta anos se sente velho, mas pode estar velho para ter filhos”, avisa Sofia Dantas. Na realidade, hoje mantemos as nossas capacidades até muito tarde, “podemos subir o Monte Everest aos 40 anos, mas podemos não conseguir ter filhos”. A médica diz que é preciso planificar a vida tomando isto em consideração, porque o relógio biológico não para.
Em Portugal, os estudos apontam para que 9% dos casais, em idade fértil, tenham problemas de fertilidade, “se juntarmos a estes os que só se lembram de ter filhos aos 45 anos, temos um problema”.
O Centro de PMA faz cada vez mais tratamentos, mas a lista de espera continua a aumentar
“Há seis anos tínhamos uma lista de espera de seis meses para fertilização in vitro (FIV) e ICSI (Microinjeção Intracitoplasmática de Espermatozoide), agora, fazemos mais tratamentos e temos uma lista de espera de um ano”, ilustra Sofia Dantas, para demonstrar o aumento da procura que, na sua opinião, vai continuar a crescer.
Apesar de, em 2017, ter havido um alargamento dos beneficiários, até essa altura só de faziam tratamentos a casais heterossexuais e passou a fazer-se a casais de mulheres ou a mulheres sozinhas, estes grupos não explicam, por si só, o aumento da procura.
A lista de espera é gerida de acordo com a ordem de entrada. “Quem já tem pouco tempo não pode fazer”, lamenta a médica. O Centro de PMA do Hospital de Guimarães é o único acima do Porto. Os cinco médicos, três embriologistas e duas enfermeiras fazem cada vez mais tratamentos, mas, mesmo assim, a lista de espera continua a crescer. “Há um limite a partir do qual não podemos continuar a aumentar, sob pena de perdermos a qualidade”, esclarece Sofia Dantas. O tom é de um certo lamento, percebe-se que gostava de fazer mais.
O Centro de PMA do Hospital de Guimarães é o centro de referência para a população da área de influência dos hospitais de Guimarães, Braga e Famalicão. “Servimos uma área muito grande e, felizmente, as pessoas estão cada vez mais conscientes que podem fazer estes tratamentos e não ficam naquela atitude de ‘não conseguimos engravidar paciência’”.
Apesar dos desenvolvimentos da medicina, o céu não é o limite
Nos Centros de PMA públicos o limite é 40 anos para fecundação in vitro e 42 para inseminação intrauterina (IIU). Na IIU a ocorrência da ovulação é promovida com recurso a medicação num determinado momento (identificado ecograficamente), nessa altura, os espermatozoides, depois de devidamente preparados no laboratório, são introduzidos no útero através de um pequeno cateter. É um tratamento relativamente simples e indolor, com taxas de sucesso que ronda os 10 a 20% por cada tentativa. Nos casos de utilização de espermatozoides doados, essas taxas podem ultrapassar os 20%.
No caso da fertilização in vitro (FIV), a estimulação dos ovários é efetuada com medicação injetável durante um período médio de 10 dias, com o objetivo de obter um determinado número de ovócitos (próximo de 10). O exame ecográfico e (nalguns casos) análises ao sangue, determinarão o momento ideal para a colheita desses ovócitos (punção folicular), efetuada por via vaginal, sob sedação ligeira, de modo a ser indolor. No mesmo dia é efetuada uma colheita de espermatozoides que, depois de preparados no laboratório, são colocados em incubação com os ovócitos. Após um período de desenvolvimento, que pode durar entre dois a cinco dias, um a dois embriões são transferidos para o útero da paciente num processo simples e indolor que não requer qualquer tipo de sedação. Cerca de duas semanas após a transferência embrionária é realizado um teste sanguíneo que determinará a ocorrência ou não de gravidez. As taxas de sucesso da FIV aproximam-se dos 30 a 40% por cada tentativa.
A Microinjeção Intracitoplasmática de Espermatozoide (ICSI), é um processo muito semelhante à FIV, difere fundamentalmente na técnica utilizada para a fecundação dos ovócitos. Neste caso é selecionado um espermatozoide para injeção direta no ovócito (microinjeção).
Atualmente, no Hospital de Guimarães não há lista de espera para IIU e a lista de espera para FIV e ICSI é de um ano. Mesmo assim, Sofia Dantas olha para o copo meio cheio. Afinal, o ano de 2020 implicou que o Centro estivesse parado durante bastante tempo, devido às medidas sanitárias para conter a pandemia, “ainda assim conseguimos manter o mesmo tempo de espera”.
Em Portugal, em 2017, segundo o Relatório da Atividade, do Conselho Nacional de PMA, 3,2% dos nascimentos ocorreram com recurso a técnicas de PMA. É possível que, em 2021, nasçam menos alguns bebés. Mesmo assim, de acordo com as guidelines internacionais, os menos de 5.000 ciclos de tratamento por milhão de habitantes que se fazem em Portugal (nos centros públicos), estão muito abaixo dos 15.000 recomendados.
Acontece que os Centros públicos nacionais estão no limite. “Todos os Centros precisavam de investimento, para poderem aumentar a sua capacidade de resposta”, avalia Sofia Dantas.
Apesar das dificuldades geradas pela pandemia, no último ano, o Hospital de Guimarães fez investimentos importantes no Centro de PMA. Foram instaladas duas incubadoras novas, um microscópio para microinjeção e um ecógrafo.
Guardar células reprodutivas
A criopreservação de células reprodutivas é um aspeto menos conhecido do trabalho do Centro de PMA. No entanto, este trabalho ganhou muita importância, “nos últimos três a quatro anos”, para ajudar os doentes com problemas oncológicos.
“Os doentes oncológicos com indicação para fazer tratamentos que vão interferir na sua capacidade reprodutiva – radioterapia, quimioterapia, cirurgia -, antes do tratamento, fazem a criopreservação dos seus gametas aqui”. É um trabalho imediato, neste caso não pode haver listas de espera. O Hospital de Guimarães recebe doentes, nestas condições, vindos de Braga e Famalicão.
O processo está cada vez melhor
As gravidezes múltiplas são muitas vezes associadas às técnicas de PMA. Se no passado era vulgar transferir vários embriões, para aumentar a taxa de sucesso, hoje, essa é uma situação a evitar. “Nós aqui, nestes anos todos, tivemos duas gravidezes triplas. Já nem fazemos transferência de três embriões. Preferencialmente fazemos a transferência de um embrião”, assegura Sofia Dantas.
Imagine um futuro em que algumas doenças geneticamente transmissíveis desaparecem. Para aquelas doenças em que já se identificou o gene em causa isso é possível. A técnica consiste em fazer uma biopsia aos embriões, antes de serem transferidos para a mulher, o estudo permite averiguar quais é que não têm a doença. Aqui em Portugal, só no Hospital de São João é que é possível, mas já não é ficção científica.
Sofia Dantas e a embriologista Rita Ramalho já perderam a conta às “Sofias” e “Ritas” que encontram na rua, anos depois da família ter passado pelo Centro. Apesar de o trabalho desta equipa estar concluído, no dia em que se verifica que a mulher está gravida, os laços são difíceis de quebrar. “Mesmo que a taxa de sucesso seja de 40%, isso significa que 60% não engravida e por vezes encaixar este insucesso nas vidas não é fácil”, pondera a médica.
Quando há sucesso, é preciso arranjar mais espaço na parede do consultório para as fotografias que se vão acumulando.