ARTIGO DE MANUEL PIMENTA
Não sei viver sem o Cavaco.
Passo de imediato a explicar antes que a frase vos perturbe o raciocínio.
Mas comecemos no início. Nos tempos em que deixei os legos e comecei a ganhar interesse pelo bicho Homem.
Tempos difíceis aqueles. Para mim nem tanto, só que fiz a primária numa escola pública. Tive amigos que nada tinham. Nem sequer para comprar um pão de leite.
Portugal tentava recuperar das trevas. Depois do nefasto regime que nos fez perder metade do mais decisivo dos séculos. Aqueles tais anos da ‘gloriosa nação’ do aquém e de além nada, que sonhava manter o seu império com um exército de analfabetos e decoradores de tabuada.
O caminho não se adivinhava fácil. O tempo que as revoluções precisam, causa impaciência nos que não são dados à mudança. Nós somos desses. E mais uma vez nos pusemos a jeito.
Portugal pedia aos céus qualquer coisa que percebesse. Como sempre pede.
É nessa altura que aparece o Cavaco. Todo ele a cheirar à ordem a que o país se habituara.
Rapidamente, quase toda a pátria se deixa engraçar por aquela figura aparentemente séria.
Mesmo uma tia minha, que era até um pouco anarca, ficou logo a gostar dele. Tudo por lhe ter dado um saco à porta do mercado municipal.
Cavaco era visto assim. Como um Salazar que dava sacos.
O país gostou da ideia. Acreditou naquilo. Quis vivê-lo de bandeirinha na mão.
E assim, lá embarcamos com ele ao leme para a grande aventura europeia.
Cavaco foi governando. À sua imagem. Transformando o país numa coisa da sua dimensão. Numa nação de números e rácios. Como se isso alguma vez nos pudesse bastar.
Mais. Suportou-se em tipos iguais ou piores do que ele. Ofereceu cargos relevantes a qualquer imbecil capaz de preencher um cartão laranja. E com o dinheiro, que nem sequer era nosso, fez o mesmo que fez aos sacos. Distribuiu pelos lambe-botas que lhe garantiam votos.
Portugal era o melhor país do mundo. Pensava o Manel dessa época.
Tudo graças aos superficiais livros de História que me davam a ler na escola.
Está bem. Volta e meia arruinávamos tudo. Mas aos meu olhos éramos Independência. Conquista. Descoberta. Abolição. Revolução.
E agora de repente éramos isto (aquilo).
O país do meu presente era o dos caga milhões. Do ‘planta e bota abaixo’ consoante o subsídio. Das almoçaradas. Das faculdades privadas com professores de ferraris. E desde já peço desculpa à classe, por chamar professores àqueles ótarios.
Havia graveto. E eles mesmo roubando lá iam fazendo obra. Sempre com os seus amigos e filhos limitada.
Ele rouba mas faz. Tornou-se o jargão popular definidor do nosso ideal de político.
O conceito de democracia lusa passou a ser esse. E todos os seus sucessores governaram (e governam), por essa cartilha.
Para muitos, estamos condenados a isso. Como se um país de quase mil anos se pudesse dar ao ‘luxo’ de ainda pensar como um desses do novo mundo.
Cavaco foi-se safando e rindo com tudo isto. Sempre com aquele sorriso vazio de marrão de primeira fila.160Comecei a embirrar com ele. A culpá-lo de todas as nossas desgraças contemporâneas.
Foi mais fácil assim. Acreditar que foi ele que pariu isto tudo e não nós que o parimos a ele.
A razão é óbvia. Custa muito pensar mal do próprio país. Mesmo sendo o país que ainda espera ver surgir do nevoeiro o mais incapaz dos seus reis.
Hoje o Cavaco vai-se embora. O que será de mim?
Não quero arranjar outro para o lugar dele. Agora não passa de um senhor de idade e por esses tenho sempre algum carinho.
Talvez fosse melhor deixá-lo estar. Assim como assim já estava habituado a vê-lo sambar na nossa cara, como dizem os brasileiros.
Até deve ter feito muita coisa boa. Dirão alguns mais entendidos.
Uma pelo menos fez. Contribuiu bastante para não me ter tornado num marginal de camisa.
Sim. Parece que ganhei compaixão pelo meu agressor. Podia até ser um caso de Síndrome de Estocolmo. Mas isso é coisa de países ricos.
O que eu devo ter é Síndrome de Boliqueime