Anabela Veloso não vai contar uma história “única”. Através da cronologia da vida da sua avó, que a criou, tirou uma fotografia de uma geração marcada pela pobreza, violência e que via a salvação no ditador António de Oliveira Salazar ou num santo de altar.
A artista de Barcelos prepara-se para estrear a sua mais recente exposição, denominada “Armandina Ferreira”, integrada na série “O Meu Corpo É o Teu Corpo”, a cargo do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. A inauguração está marcada para sábado, em Coimbra.
Este é um trabalho de investigação que remexe nas memórias do passado da sua família e cruza-as com o período histórico em que a sua avó viveu. Com isto, a artista descobriu possíveis justificações para a formação de uma mulher dura e conservadora. “A minha avó criou-me, sempre fomos muito próximas, mas foi sempre difícil para mim perceber como violência educa”, sintetiza, em entrevista a O MINHO
Armandina Ferreira nasceu na década de 30 do século XX e viveu os primeiros 40 anos da sua vida debaixo uma ditadura fascista. Num tempo em que os pilares da sociedade eram “Deus, Pátria e Família”, Armandina nasceu pobre, passou fome e também casou cedo. Sofreu de violência doméstica de um homem que morreu por não resistir ao vício do álcool.
Apesar de tudo, vingou e deu uma casa a cada filho. É vista como uma “heroína” pela família, “toda a gente tem um brilho nos olhos quando fala dela”. Mas Anabela Veloso sempre teve uma relação de conflito com esta mulher de armas.
“Magoavam-se coisas que ela dizia”
“Em determinado momento da minha vida, não conseguia perceber e magoavam-me coisas que ela dizia. Discriminatórias, sexistas, na linha de ideias da ditadura”, conta a barcelense de 31 anos.
Essas palavras magoavam-na psicologicamente e a “educação” também era física. “Ela também era uma pessoa bastante agressiva, como muita gente daquela geração também é”, diz.
Após este trabalho artístico, que é também uma reflexão com os seus sentimentos mais íntimos, tem uma nova visão sobre esta relação com a sua avó, que morreu em 2018.
“Com este trabalho consegui perceber que coisas a influenciaram a ser a pessoa que ela foi e ainda que marcas é que esta personalidade muito vincada deixou na geração da minha mãe e na geração seguinte, a minha”, conta. Em Anabela, criou “resistência” a todo o ideário conservador.
Diz que não é possível “olhar para a vida dela sem olhar para o contexto histórico”, por isso colocou tudo em perspetiva no trabalho que se preparar para mostrar ao público.
A instalação multimédia conta com fotografias da sua avó impressas com a técnica de risografia. “90% das fotos da vida dela tem associação a esta parte religiosa, que ela sempre me forçou. Se eu não quisesse ir à missa, ela literalmente me puxava por uma orelha. Via a Igreja como uma das razões de se viver”, conta.
Só existem registos no pós-25 de abril de 1974. “Não há nenhuma da vida dela. Só uns apontamentos do que as pessoas acham que ela fez, onde ela esteve e como ela conheceu o marido, é tudo muito especulativo”, diz. Para retratar o que veio antes, fez impressões monocromáticas.
Está tudo disposto num friso cronológico. Às fotos junta-se a propaganda produzida pelo Estado Novo. Tudo se une pela narração de Anabela, através de um áudio-guia, que faz uma descrição dos vários momentos.
“Consigo ver o início de um regresso à geração da minha avó”
Com este olhar para o passado é também possível fazer reflexões sobre os ares que se vivem na Europa e, em particular, em Portugal. O cheiro a mofo da velha extrema direita começa a chegar ao nariz e isso é “extremamente assustador” – “Consigo ver o início de um regresso à geração da minha avó”.
“Acho que é importante as pessoas olharem para o passado e tentarem perceber melhor o que aconteceu e que consequências há do que aconteceu, e se continuarmos neste caminho”, nota.
Anabela vive entre Portugal e a Dinamarca e, essa distância, mas também o mundo que tem absorvido, fá-la olhar para Portugal e para os portugueses com os sentidos cada vez mais atentos. “Como agora estou lá fora, consigo perceber o que há de peculiar na cultura portuguesa”, revela.
Porém, estas reflexões ficam para uma próxima oportunidade, talvez para um próximo trabalho artístico.
Este, que está prestes a ser revelado, foi responsável por que Anabela Veloso conquistasse maior “paz” com o seu passado e descobrisse a “empatia” que tantas vezes faltou nesta relação incompreendida com a sua avó.
Anabela Veloso é artista multidisciplinar
Anabela Veloso, natural de Barcelos, é uma artista com uma prática multidisciplinar que utiliza uma variedade de meios, como instalação, escultura, fotografia, performance e ações participativas. Formada pela Royal Danish Academy of Fine Arts (Dinamarca) e pela Faculdade de Belas Artes do Porto, desenvolve uma abordagem artística que reflete o seu recorrente “sentimento de impotência perante questões sociais e políticas”, lê-se na sua nota biográfica.
O seu trabalho especula noções do coletivo, apontando tanto para lacunas e fendas de sistemas organizacionais, como para a empatia e o amor partilhados dentro de um grupo em que se é próximo. Desconstruindo ou possibilitando relações, a sua prática sugere o coletivo como um espaço para especular, revelar, dialogar e ouvir em conjunto.
A sua carreira artística é marcada por exposições realizadas em Portugal, Dinamarca, Suécia e Áustria, destacando-se o Kunsthal Charlottenborg (Copenhaga), o Thorvaldsens Museum (Copenhaga), o Tanzquartier Wien (Viena) e o Museu de Serralves (Porto).