Caurins são conchinhas que foram das primeiras ‘moedas’ utilizadas pelos portugueses para comprar pessoas na costa ocidental de África e podem atualmente ser vistas e tocadas na visita-guiada ‘Testemunhos da Escravatura’ do Museu do Dinheiro, em Lisboa.
“Uma pessoa valia cerca de 100 mil caurins. Imaginemos o trabalho de recolher manualmente 100 mil caurins numa praia”, diz o historiador Davide Santos, enquanto pega alguns caurins cuidadosamente com uma luva e os mostra e passa aos visitantes.
Caurins são as conchas de um molusco muito valorizadas durante séculos na Ásia e em África. São conchas brancas, brilhantes, como que um búzio pequeno.
Os caurins vinham das praias do Índico, particularmente das Maldivas, e foram cruciais no comércio esclavagista na costa ocidental de África. O ano de 1515 é apontado como o primeiro ano do comércio estruturado e sistemático com caurins.
Dos séculos XVI ao XVIII, foi uma das ‘moedas’ usadas pelos portugueses em África para comprar pessoas e as escravizar, conta Davide Santos durante a visita no Museu do Dinheiro, que fica na baixa lisboeta e bem perto de um dos principais locais de venda de escravos em Lisboa (o Terreiro do Pelourinho Velho, junto à atual Praça do Comércio).
Estas conchinhas tinham a vantagem de ser transportáveis, duráveis, como as moedas de hoje, e tinham ainda o valor de objeto raro e belo, que dava estatuto a quem o tinha e ostentava. Eram muito usadas em cintos ou colares, como ainda hoje.
Além de caurins, ‘Testemunhos da Escravatura’ também mostra outros objetos usados para comprar pessoas, como zimbos (pequenas conchas colhidas na costa de Luanda, sobretudo por mulheres) e manilhas (argolas largas de metal que também tinham a função de adorno, tipo pulseira, habitualmente produzidas em Veneza, Flandres, Liverpool e Birmingham).
Durante a visita, Davide Santos recorda as cartas que o rei Afonso I do Congo (1507-1542) enviou a reis portugueses (com quem mantinha boas relações) a pedir que Portugal parasse com o comércio de escravos, com que inicialmente tinha concordado. Argumentava que se tinha descontrolado e estava a deixar o seu reino despovoado.
A visita passa ainda pela maior moeda de ouro cunhada em Portugal, a dobra de 24 escudos, uma moeda de ouro com 85 gramas que, também na sua função de propaganda, simbolizava a riqueza e poder do rei D. João V (1706-1750), em cujo reinado chegaram grandes remessas de ouro do Brasil.
“São objetos extraordinários, jóias, obras de arte, que contam uma história trágica. A estética esconde acontecimentos históricos terríveis”, diz Davide Santos.
Segundo Daniela Viela, técnica de museologia no Museu do Dinheiro, que pertence ao Banco de Portugal, esta visita foi criada em 2017 quando Lisboa foi capital ibero-americana da cultura, incluída no eixo programático da memória africana relativamente à escravatura.
“Confirmámos que tínhamos objetos que fazia todo o sentido entrarem para este projeto e não quisemos fugir à responsabilidade de admitir que a escravatura africana foi parte do desenvolvimento económico de Portugal”, afirma Daniela Viela à Lusa.
Para a responsável, o Museu do Dinheiro tem várias dimensões, “é um museu de história, de arqueologia, de economia, de arte”, que conta a história do mundo através do dinheiro e da sua importância na vida das sociedades.
“Nós temos um dever de verdade para com a história, para com estes milhões de pessoas escravizadas”, diz Daniela Viela.
“Se haverá outros culpados, isso não retira a responsabilidade de falar do papel de Portugal neste comércio transatlântico de pessoas escravizadas. Eu, enquanto português, descendente de pessoas que terão participado neste comércio, tenho uma responsabilidade histórica de a contar, de validar a dor”, afirma, por seu lado, Davide Santos.
Os números da escravatura são muito difíceis de estimar por vários fatores – como contradição e insuficiência das fontes – e serão sempre razão para debate.
Segundo o Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos (recentemente publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa), foram levados da Costa Ocidental Africana para o continente americano mais de 12 milhões de pessoas escravizadas.
Segundo o ‘site’ SlaveVoyages (resultado da colaboração de várias universidades), entre 1501 e 1875, no ‘ranking’ de países que mais escravizaram Portugal está no topo, com 5,8 milhões de pessoas escravizadas. Seguem-se Reino Unido, França, Espanha, Países Baixos, Estados Unidos e, por fim, Dinamarca com outros países Bálticos.
Da costa Oriental de África, também houve tráfico (em menor quantidade) designadamente para a Ásia.
O tráfico de escravos desde África também teve como destino a Europa, incluindo Portugal.
O ano de 1444 marca a chegada a Portugal (a Lagos) dos primeiros escravos trazidos de África, iniciando-se então a sua comercialização. Nessa primeira venda, terá estado presente o Infante Dom Henrique.
No final do século XVI, estima-se que 20% da população de Lisboa fossem pessoas escravizadas.
Foi apenas nos anos 1930 do século XX que morreu a última pessoa escravizada, uma mulher que vivia no Bairro Alto.
Em 2015, o Reino Unido terminou de pagar uma dívida que contraiu no século XIX para pagar indemnizações a várias famílias que então se sentiram prejudicadas com a abolição da escravatura.