Frederico Mendes Paula é especialista nas relações históricas entre Portugal e Marrocos, como o atestam os dois livros que publicou: “Portugal em Marrocos- olhar sobre um património comum” e, recentemente, o “Histórias de Portugal em Marrocos”. Em entrevista a O MINHO passa em revista a importância, para ambos os países, da batalha de Alcácer Quibir, o legado português, o patrimonial e o imaterial, os mitos que subsistem no país magrebino sobre o português e a cooperação luso-marroquina em matéria de conservação de fortalezas e edifícios. E diz que Marrocos está em franco desenvolvimento.
Em 4 de agosto de 1578, passam agora 433 anos, o Rei D. Sebastião, à frente do nosso exército, perdeu a Batalha dos Três Reis, em Ksar-el-Kibir. batalha essa que teve grande importância para ambos os países…para Portugal, porque veio a perder a independência, e para Marrocos, porque terá sido a primeira vez que a nação marroquina se uniu, neste caso para enfrentar o invasor… Como vê estas duas realidades?
Alcácer Quibir é sem dúvida um marco incontornável na História dos dois países. Na base dos acontecimentos estava a obsessão do Rei D. Sebastião em retomar a política expansionista de D. Manuel, e a oportunidade surgiu com uma crise sucessória em Marrocos, com a deposição de um rei que tomara o poder de forma ilegítima e que pediu ajuda aos portugueses para ser reconduzido, prometendo a D. Sebastião “mundos e fundos” que o ingénuo monarca português aceitou.
Para Portugal é uma página negra a todos os níveis, já que o país embarca numa aventura atrás de um rei imprudente, inexperiente, fanático e intempestivo, cujo sucessor em caso de morte era o rei de Espanha. D. Sebastião sonhava com a criação de um reino português em Marrocos e de uma cruzada contra os “infiéis”, e a empresa revelava-se condenada à partida pela desmesurada ambição que encerrava e pela forma irrefletida e unilateral como as decisões preparatórias e no terreno foram tomadas. Em Alcácer Quibir morreu a nata da nobreza portuguesa e empenhou-se a nacionalidade. Mas as consequências para Portugal foram ainda mais profundas e prolongaram-se para além da restauração da nacionalidade 60 anos depois, com a criação do Mito do Sebastianismo, que moldou a personalidade da Nação, que se tornou triste, resignada e dependente de um salvador.
União de Marrocos
Para Marrocos foi um momento de união do país em torno do sultão. A questão da união política de Marrocos é complexa, já que ao longo dos tempos alternaram períodos de unidade nacional com fracionamentos do poder, sobretudo polarizados em Fez e Marraquexe, mas também nos chamados bled el-makhzen, ou país da lei, baseado no poder do Estado Marroquino, e bled es-siba, ou país do caos, baseado na autonomia política das tribos berberes nas áreas mais remotas do território. A Dinastia Sádida, que governava Marrocos à data da batalha, tinha unificado o país em 1550, terminando com uma vigente dualidade de poder assente no governo dos Oatácidas em Fez e dos Sádidas em Marraquexe. Com Alcácer Quibir existe de facto uma união em torno do Rei Abdelmalek para expulsar o invasor, mas alguns anos depois estala uma guerra civil fraticida e com ela volta um novo fracionamento do poder.
Tropas variadas dos dois lados
Um aspeto que é relevante referir é o de que de um lado e do outro da contenda estavam forças consideráveis de origem muito variada. Do lado português estavam tropas marroquinas do rei deposto, mas também muitos mercenários alemães, italianos e castelhanos. Do lado marroquino estavam tropas turcas e de várias partes do Império Otomano, do Reino de Granada e muitos renegados europeus, com portugueses em grande número. Aliás, facto que é pouco conhecido e divulgado, após a morte do Rei Abdelmalek de Marrocos em plena batalha, a condução do exército marroquino é assumida pelo seu camareiro, um português convertido ao Islão de nome Reduão.
Alcácer Quibir fez cerca de 16 mil prisioneiros portugueses. Muitos “tornaram-se mouros” e contribuíram para a realização de importantes obras em Marrocos, como pontes ou fortalezas, para o desenvolvimento das técnicas de navegação e da construção naval, e inclusivamente para a modernização do Estado Marroquino.
O património imaterial
Dos dois séculos e meio de permanência portuguesa na costa de Marrocos ficou uma vasta memória de património construído que o Frederico tão bem documentou na sua obra. O que permaneceu para além disso, na cultura, na gastronomia e na memória dos dois povos?
A identificação das influências portuguesas no chamado património imaterial são difíceis de estabelecer, por várias razões. Por um lado, porque Portugal nunca colonizou o país, mas apenas manteve algumas praças na costa de Marrocos, em média poucos anos, na maior parte delas entre 40 e 80 anos, se excetuarmos as três praças com longevidade mais alargada, Ceuta e Mazagão, cerca de 250 anos, e Tânger, cerca de 200 anos, praças que vivam isoladas do território e sujeitas a um bloqueio terrestre. Por outro lado, porque as restantes e subsequentes presenças europeias, que em Marrocos se estabeleceram, concretamente os Protetorados espanhol e francês a partir de 1912, criaram uma “nebulosa” de influências latinas, às quais se acrescentam é claro, as influências dos próprios renegados e cativos europeus, que nos séculos XVI e XVII tiveram um peso significativo na sociedade marroquina.
Mito do Português em Marrocos
Muitas dessas influências portuguesas inserem-se no chamado Mito do Português em Marrocos, uma conotação do português com o inexplicável, com diversos mitos que fazem parte do imaginário marroquino, por razões mais ou menos compreensíveis, às quais não serão alheios os factos de se encontrarem enraizadas em comunidades rurais, com base em histórias com origem suficientemente remota para darem largas à imaginação popular, mas de memória suficientemente recente para que os mais idosos ainda as transmitam de geração em geração. São surpreendentes referências a habitantes portugueses de grutas nos confins do deserto ou nas montanhas mais inacessíveis, a autores de pinturas rupestres em tempos imemoriais, a pontes, aldeias e outras construções edificadas em locais longínquos que os portugueses nunca ocuparam, como são exemplo os célebres celeiros de falésia ou igoudar n-bertkiz (agadires dos portugueses), ou os vestígios da Gara de Medouar ou da aldeia perdida de Ba Hallou às portas do deserto. São prisões de cativos portugueses como a Prisão de Anafé ou a Habs Qara de Meknés, esta última supostamente construída por um arquiteto português, cativo do sultão Mulei Ismail. E até a uma condessa sedutora com pés de camelo, Aicha Kandicha, a Condessa, que ainda hoje constitui uma espécie de figura moralizadora dos bons costumes da fidelidade conjugal e do bom comportamento das crianças.
Acima de tudo não existe uma investigação aprofundada sobre esse património, o que torna difícil essa identificação e nos remete para o campo das conjeturas e dos mitos.
Dialeto com marca latina
Num dos meus passeios pelo país, li num jornal de Tetouan um artigo de uma professora da universidade local, falando de um dialeto, ou pelo menos, um linguajar de origem portuguesa a que chamou de Tarija do Norte…O que ficou de influência portuguesa nas línguas locais?
A Darija Marroquina é o dialeto Árabe Magrebino falado correntemente em Marrocos. Apesar de apresentar algumas diferenças regionais, fruto da grande diversidade cultural e geográfica do país, acabou por se uniformizar através da normalização da vida diária e da influência dos média. Na base da Darija está inequivocamente um substrato árabe e, em menor quantidade, berbere ou amazigh, mas ao qual se acrescentam as múltiplas marcas do francês, espanhol, português e mesmo inglês, introduzidas em diferentes períodos da História de Marrocos. Algumas destas influências virão também da chamada Língua Franca, uma linguagem falada pelos carcereiros marroquinos e pelos cativos europeus, sobretudo no século XVII, que permitia o entendimento dos dois lados através de uma linguagem neutra, uma “no man’s langue”, como lhe chamou Jocelyne Dakhlia. A influência do Português manifesta-se também em textos de Português Aljamiado, ou seja, escrito com o alfabeto árabe pelos chamados “mouros de pazes”, marroquinos que lutavam do lado português, sobretudo durante o chamado período do Protetorado da Duquela, entre os anos de 1510 e 1516. Esses “mouros de pazes” falavam o Português, mas não sabiam escrever com o alfabeto latino, como são os exemplos das cartas do Alcaide Bentafufa escritas a D. Manuel e a Nuno Fernandes de Ataíde, traduzidas por David Lopes.
Palavras com origem portuguesa
Mais uma vez podemos avançar com conjeturas, à falta de estudos aprofundados, existindo várias referências de diversos autores a uma influência do Português na Darija Marroquina, em palavras como Bagado (advogado), Barko (barco), Berraka (barraca), Billacho (palhaço), Bisketo (biscoito), Borro (alho-porro), Buskeda ou Buskira (pesqueira, sistema de pesca utilizado em Mazagão, baseado na construção de muros de pedra que permitem a entrada de peixe na maré alta e os retém no interior na maré baixa), Brassa (praça), Chatamata (mulher chata, de “chata de matar”), Chkama (escama), Chkuadra (esquerda), Fabor (favor, borla), Fargata (fragata), Fechta (festa), Gamila (gamela, tacho), Garro (cigarro), Kapa (capa), Kapicho (capucho), Kapote (capote), Kochta (costa), Karrossa (carrossa), Qabeta (gaveta), Qamija (camisa), Randa (renda), Ranjo (gancho, no sentido de pessoa retorcida), Ricibu (recibo), Rolo (rolo), Ruina (ruína), Sabate (sapato), Saia (saia) ou Simana (semana), entre muitas outras.
As praças, as fortalezas e os fortins, as muralhas e outros edifícios construídos pelos portugueses na costa marroquina são uma marca patrimonial e turística de Marrocos…O que está a ser feito para a sua preservação? O que é necessário fazer?
Existe bastante trabalho realizado em termos de cooperação Luso-Marroquina sobre este Património Comum, não só em ações de recuperação, como de investigação. São exemplos a recuperação da Torre de Menagem de Arzila, projeto e parte do financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian (1994), o projeto de restauro da Catedral de Safim, também da Fundação Calouste Gulbenkian (2004), a missão arqueológica e arquitetónica Luso-Marroquina para estudo das cidades e sítios de Azamor, Safim, Aguz, El Jadida e Tânger (2008-2012), e a missão arqueológica Luso-Marroquina para o estudo científico e a valorização do sítio arqueológico de Alcácer Ceguer (em curso), parcerias do CHAM-Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho e da Direction du Patrimoine Culturel do Governo de Marrocos, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do Centre National pour la Recherche Scientifique et Technique, o projeto do Centro de Interpretação do Património Luso-Marroquino de El Jadida, uma parceria entre a Direção Geral do Património Cultural de Portugal e o Ministère de la Culture du Royaume du Maroc (em curso), ou o Centro de Alcácer Quibir para a Valorização e Estudo do Património Luso-Marroquino, uma parceria da Câmara Municipal de Lagos e da Commune de Ksar El Kebir, com a participação do CHAM-Centro de Humanidades (em curso).
O Estado Marroquino tem levado a cabo importantes trabalhos de conservação neste Património Comum, como por exemplo nas muralhas de Tanger, de Asilah ou de Azemmour.
Reforçar a cooperação
O que é necessário fazer? Reforçar a cooperação entre os dois países para o estudo, salvaguarda e reabilitação do Património Comum numa perspetiva de desenvolvimento, voltada para a gestão desse património, baseada no incremento de um turismo cultural que reverta em benefício das comunidades locais, através dos chamados benefícios indiretos, com a criação de infraestruturas de apoio e de empregos. Note que as antigas Praças Portuguesas eram todas na costa Atlântica, em zonas hoje de turismo sazonal. O desenvolvimento desse turismo cultural, não dependente do sol e do mar, é importante como complemento do turismo tradicional, com vista a conferir maior estabilidade à economia e ao emprego.
No seu livro «Histórias de Portugal em Marrocos» descrevem-se, profusamente, as muitas lutas que os dois países travaram e a violência que as caracterizava, ainda que pontualmente com episódios de cavalheirismo, amizade e perdão…Apesar disso, nos dias de hoje, os marroquinos recebem com uma simpatia, que dizem especial, os portugueses… Como explica isso? A cooperação mútua funciona?
Marrocos é um país hospitaleiro e os marroquinos sabem receber como ninguém. O passado comum, com todos os seus episódios de encontros e desencontros, deve ser encarado como a base para um relacionamento de amizade e cooperação. É isso que penso que se está a fazer e que materializa em múltiplas iniciativas da parte dos dois Estados e de entidades dos dois países.
Marrocos tem-se vindo a modernizar em termos sociais, económicos e até políticos… Como vê o presente e o futuro do país?
Marrocos é um país rico em recursos físicos e humanos, e em franco desenvolvimento. Tem uma estrutura social jovem e uma sociedade heterogénea tolerante, gerida por um sistema político assente numa monarquia constitucional. Tem um forte sector agrícola e piscatório, recursos naturais importantes, sobretudo fosfatos, dos quais é o primeiro exportador mundial, e uma indústria forte. O turismo é um dos sectores mais relevantes para a economia. Marrocos é um dos chamados países emergentes, a terceira economia de África, e esta pujança económica é visível quando se visita o país, seja no crescimento das cidades, nos sinais patentes na sua modernização ou nas recentes infraestruturas criadas, como é exemplo o TGV.
Curriculum vasto ao serviço da amizade luso-marroquina
Frederico Pavão Mendes Paula [Lisboa, 1956], Arquiteto.
Licenciado pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa [1981] e pós-graduado pelo Institute for Housing Studies de Roterdão [1982].
Pertence aos quadros da Câmara Municipal de Lagos desde 1998, onde exerce funções no Gabinete de Estudos Estratégicos, na área do planeamento estratégico, reabilitação do património e prevenção do risco sísmico.
É secretário-geral da Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico (APMCH), presidente do júri do Prémio Nacional de Arquitetura «Alexandre Herculano», membro do Conselho de Curadores dos Centros Históricos Portugueses, da Direcção do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, da Fundação Al-Idrisi Hispano-Marroqui e do Instituto de Cultura Ibero-Atlântica.
Foi vencedor de duas edições do Prémio Gulbenkian para a Valorização do Património [1997 e 2003], distinguido com o Prémio Memória e Identidade da APMCH [2014] e com o Brasão da Commune de Ksar El Kebir [2018].
Organizou e participou em diversos seminários, conferências e exposições, e é autor e co-autor de publicações e artigos sobre temas relacionados com a sua actividade profissional e com as relações históricas entre Portugal e Marrocos, com destaque para os livros “Portugal em Marrocos. Olhar sobre um Património Comum” [2016], publicado também em língua francesa, e “Histórias de Portugal em Marrocos” [2019]. Organizou em Marraquexe [2017], e em El Jadida [2018], duas acções de formação para guias de turismo marroquinos sobre património de origem portuguesa em Marrocos, em colaboração com a Embaixada de Portugal em Marrocos, as Direcções Regionais de Cultura de Marraquexe e de Casablanca-Settat e a Région de Marrakech-Safi. Organizou em Marrocos o evento “Efeméride dos 250 Anos do Abandono da Praça de Mazagão” [2019], promovido pela Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico, com apoio da Embaixada de Portugal em Rabat, do CHAM – Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, do Ministério da Cultura do Reino de Marrocos e da Commune de Ksar El Kebir. Participou em Marrocos, na reportagem da SIC “Marcas que o tempo não apagou” [2019], apoiada pela Delegação do Turismo de Marrocos em Portugal, na definição do itinerário, elaboração dos textos, apoio científico e contactos institucionais.
Presentemente elabora para o Instituto Camões e Embaixada de Portugal em Marrocos um conjunto de 5 vídeos sobre a presença portuguesa em Marrocos, em versões portuguesa, árabe e francesa, e desenvolve o projecto do Centro de Ksar El Kebir para o Estudo e Valorização do Património Luso-Marroquino, no âmbito do Protocolo de Geminação assinado em 2018 entre a Câmara Municipal de Lagos e a Commune de Ksar El Kebir.
É autor do blogue www.historiasdeportugalemarrocos.com