O Albergue de S. Crispim, em Guimarães, recebeu este domingo 54 pessoas à mesa para a Ceia dos Pobres, alguns sem-abrigo, outros que fugiram à solidão e ainda alguns a quem faltou o dinheiro para o bacalhau.
É o continuar de uma tradição que começou há 700 anos.
O cheiro a bacalhau cozido sente-se na rua, uma viela perto do Tribunal da Relação no Centro Histórico de Guimarães. São 19:00. As lojas já estão fechadas, o barulho da azáfama que preencheu aquela rua durante o dia dá lugar ao silêncio. É quando abrem as portas do albergue da ordem S. Crispiniana, onde a ceia de Natal vai ser servida “a quem precisa”.
As mesas estão postas. Há bacalhau, couves, batatas, azeite, não faltam as rabanadas, sobra o pão. Falta a família, um teto, “faltam os euros”. Os voluntários recebem quem se vai chegando, timidamente, à porta, “há muita vergonha em pedir ajuda”, explicou António, voluntário, à agência Lusa.
“Isto não é fácil. Nunca é fácil ter de pedir comida. Nesta noite é ainda mais difícil, solitário. Aqui, além da comida quente, temos alguma companhia. O Natal é um pesadelo para quem está só na vida”, confessou Ramiro Santos, um “pobre lobo solitário”, como se definiu.
Ramiro perdeu a família. Ou perdeu-se da família. Entregou-se ao álcool, mas aos 68 anos já não bebe. Vive sozinho num quarto. “A minha mulher deixou-me e levou a nossa filha. Não a posso censurar, foi a melhor decisão que ela tomou. Há 12 anos que não vejo a minha filha, emigrou. E eu fiquei sozinho, aqui”, contou.
Em frente, as mesas são corridas, um casal de meia-idade não levanta os olhos do prato: “Não se acanhem, aqui ninguém é melhor do que ninguém e ninguém julga ninguém”, disse-lhes Ramiro, enquanto lhes estendia o cesto do pão.
Uma voz trémula respondeu um tímido obrigado. “É a primeira vez que não temos dinheiro para comer nesta noite. Ouvimos falar desta ceia e perdemos a vergonha e viemos”, admitiu o homem, olhos rasos de água.
Joaquim, 78 anos, e Paulina, 66 “natais a comer bacalhau”, são já “mobília da casa”, dizem. “Vimos aqui há já uns anos. Não somos ricos, também não somos pobres, mas somos sozinhos e em casa a solidão é muita quando não se tem ninguém”, explicou a mulher.
Para Rafael, sem-abrigo, o bacalhau que vai saboreando enquanto fala é a única coisa quente da semana. “Não digo que passe fome. Mas é claro que não tenho a melhor alimentação. Esta semana ainda não tinha comido nada assim, cozinhado na hora, quente. Mas não me queixo”, disse.
Às 21:30, já a sala estava vazia. Sobravam os pratos para lavar, o chão por limpar. O cheiro do bacalhau ainda estava na rua.
“Este ano vieram mais. O ano passado servimos 48 refeições. Este ano foram 54. Dizem que a crise acabou, mas tenho duvidas. Ainda há muita pobreza escondida e muita vergonha em pedir ajuda”, explicou António, já sem o avental com que serviu os comensais.
Desde 1315, “atestam os documentos”, que se serve a Ceia dos Pobres no dia 24 de dezembro naquele albergue. “Dizem que começou com a imposição de beneméritos que deixaram a fortuna à Irmandade de S. Crispim mediante a obrigação de todos os anos ser ali servida uma ceia de Natal aos pobres”, explicou José Teixeira, um dos obreiros da tradição.
No final da ceia, Rafael saiu do albergue e deixou-se ficar encostado à parede. Fuma um cigarro: “Vê porque não me queixo? Comi, estou a fumar o meu cigarrinho e depois vou dormir na zona nobre da cidade”, brincou.
Esta noite, Rafael vai dormir num dos bancos do Largo do Toural.