ARTIGO DE TIAGO BEITES
Geneticamente melgacense, cientista por acaso
E se eu dissesse que todo esse alarmismo com as bactérias resistentes a antibióticos é uma pura invenção? Se eu dissesse tal coisa estaria, naturalmente, a ser um mentiroso irresponsável. Um estudo recente estimou que, só em 2019, houve 1.3 milhões de mortes derivadas de infecções com bactérias resistentes a antibióticos*. Se nada for feito, poderemos num futuro não muito longínquo voltar à era pré-antibióticos, quando uma simples infecção de garganta poderia ser fatal.
O que é então uma bactéria resistente a antibióticos e como se gera? Usemos um paciente imaginário que acordou de manhã com uma forte dor de garganta (imaginário, porque não se deseja dores de garganta a ninguém). Diligentemente dirige-se ao médico de família, passados todos os trâmites burocráticos senta-se na marquesa, abre a boca, diz ahhh (muito importante dizer ahhh) e recebe a notícia de que se trata de uma infecção bacteriana. Façamos agora uma viagem microscópica à garganta do paciente imaginário. Chegados ao local, o cenário é de guerra. As células locais emitem sinais desesperados a pedir reforços, especialmente das forças especiais chamadas linfócitos, enquanto células já no terreno, chamadas macrófagos, tentam literalmente comer o maior número possível de invasores. Por outro lado, os invasores bacterianos, aproveitando os recursos disponíveis, multiplicam-se a bom multiplicar. Apesar de toda esta complexidade ao nível microscópico, o nosso paciente imaginário só se apercebe da dor de garganta. Felizmente existem os rebuçados para lidar com a dor de garganta. No entanto, as bactérias por lá continuam. Se estas persistirem por dias significa que as nossas defesas talvez precisem de uma ajuda sob a forma de antibiótico.
O que são e de onde vêm os antibióticos? Os antibióticos são, originalmente, moléculas produzidas por microorganismos como arma de defesa e/ou comunicação com outros microorganismos, fazendo parte de uma épica batalha química microscópica que remonta, provavelmente, ao início da vida. Não é de estranhar, portanto, que, ao longo de milhões de anos, as bactérias se tenham tornado bastante competentes a sobreviver na presença de antibióticos. E como é que se gera uma bactéria resistente? Há vários mecanismos. Por exemplo, pode haver transferência de ADN (livro de instruções da vida) que contém informação para uma proteína que permite à bactéria defender-se do antibiótico – transferência horizontal de genes. Outro exemplo, e aquele que talvez mais interesse a esta história, decorre de uma característica transversal à vida: antes de cada divisão celular ocorre a duplicação do ADN para que cada célula-filha tenha uma cópia idêntica para si. Mas as cópias do ADN nunca são 100% idênticas. Há erros, também conhecidos por mutações genéticas. Sabendo que uma infecção pode começar com dezenas de bactérias e, no pico da infecção, atingir a marca dos milhares de milhões, torna-se bastante provável que, numa dessas divisões, se gere uma mutação que permita à bactéria tornar-se insensível ao antibiótico. Um possível mecanismo é, se essa mutação der origem a uma proteína ligeiramente diferente ao ponto de o antibiótico não se conseguir ligar, então a bactéria pode tornar-se resistente.
Mas voltemos ao nosso paciente imaginário. Avia a receita, chega a casa e tem cinco comprimidos para tomar. Um por dia. Toma o antibiótico, sente melhorias ao segundo dia e deixa de tomar. Este é um cenário a evitar a todo o custo. E porquê? Em primeiro lugar, porque o mais provável é ter eliminado uma boa parte das bactérias, mas não todas. Resultado: em alguns dias é bem possível que voltem as dores de garganta, porque permitiu que as poucas bactérias que sobreviveram, se voltassem a multiplicar. Mas este nem sequer é o maior problema. Ao deixar o tratamento com uma dose mais baixa do que o previsto, cria-se a oportunidade das bactérias aprenderem a resistir ao antibiótico por tentativa erro (mutação genética). O uso consciente do antibiótico, tanto por parte de quem prescreve, como de quem o toma, em conjunto com uma regulação estrita do uso de antibióticos em indústrias, são, portanto, ferramentas vitais para que possamos continuar a usufruir de uma arma que salvou milhões de vidas desde os tempos da introdução da penicilina na medicina.
* Antimicrobial resistance collaborators (2022) “Global burden of bacterial antimicrobial resistance in 2019: a systematic analysis” The Lancet https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)02724-0