José Furtado é diretor do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães e foi indicado para representar a Administração Regional de Saúde do Norte na Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia, Obstetrícia e Bloco de Partos que integra cinco coordenadores regionais e um coordenador nacional. Esta Comissão foi a primeira resposta do Ministério da Saúde aos encerramentos das urgências da especialidade, um pouco por todo o país, por falta de médicos. A ministra, Marta Temido, encarregou a Comissão de identificar os recursos disponíveis por hospital e aprovar um modelo de gestão integrada de cada região, apoiando as administrações regionais de saúde nesse trabalho. José Furtado faz o balanço do trabalho da Comissão, na Região Norte e explica porque é que um o Hospital de Guimarães, com 30 anos e sem as mesmas condições materiais, se tornou na salvaguarda para o moderno Hospital de Braga.
O especialista sublinha o bom funcionamento da rede na Região do Minho e apela à confiança das grávidas, assegurando-lhes que o SNS está preparado para as receber e para lhes prestar os melhores cuidados.
O que é a Rede de Referenciação Hospitalar?
Os hospitais não têm todos o mesmo grau de diferenciação, portanto, tem que haver hospitais emissores e recetores. Na Região do Minho, o nosso hospital de última linha é o de Braga. Todos os outros, em situações de emergência devem socorrer-se do Hospital de Braga. Contudo, o Hospital de Guimarães é altamente diferenciado, no caso da medicina materno-infantil, similar ao Hospital de Braga. Temos uma unidade de cuidados intensivos neonatal igual à de Braga. Numa segunda linha, somos também uma referência, nesta zona. Por exemplo, o Hospital de Famalicão, ou outros hospitais da Região Norte, podem transferir para aqui bebés abaixo das 34 semanas. A rede está estabelecida há muito tempo, foi revista em 2020, aquando do covid e, portanto, nós sabemos perfeitamente a quem recorrer.
Mas neste caso é o hospital de referência que precisa de recorrer ao de segunda linha?
O Hospital de Braga ficou em contingência por motivos que todos conhecem e isso levou à inversão da situação habitual. A ARS e a Comissão criaram este mecanismo ao contrário. Nos dias em que Braga está em contingência, o Hospital de Guimarães assegura o suporte. Foi preciso programar o trabalho e preparar os hospitais recetores para os diversos trabalhos que têm que ser feitos. Os hospitais que estão a apoiar Braga são, numa primeira linha, Guimarães, Famalicão e Viana do Castelo e, numa segunda linha, o Hospital de São João.
“Inverteram-se os papéis, isso é verdade, mas a nossa prioridade número um são as grávidas”
Tem funcionado bem?
Sim, porque há uma união muito grande. Nós estamos habituados, mesmo sem situações de contingência a articular desta maneira. Inverteram-se os papéis, isso é verdade, mas a nossa prioridade número um são as grávidas. Acolhemos da melhor maneira, todo o trabalho que não é executado no Hospital de Braga. Felizmente, no Norte este é o primeiro caso, mas no próximo sábado, está previsto na Póvoa do Varzim haver limitações e o mecanismo da rede já está a funcionar.
A Rede de Referenciação Hospitalar pode ser um eufemismo para no futuro nos dizerem que pode ser preciso concentrar meios em alguns locais e encerrar algumas maternidades?
Não está nada em cima da mesa relativamente a isso. Como se sabe, noutros tempos, já se fizeram essas restruturações. Lembro-me de Fafe e de Barcelos que já tiveram maternidade. É evidente que existem alguns hospitais com menos de 700 e até de 500 partos, portanto, é preciso equacionar a viabilidade dessas maternidades. Mas aqui, na Região do Minho, não está nada disso em discussão.
Para manterem um bom nível, os profissionais, médicos e enfermeiros, precisam de fazer um número mínimo de partos anuais. Quantos partos anuais são precisos para viabilizar, desse ponto de vista, uma maternidade?
No Minho, todos os hospitais estão acima dos 1.200 partos definidos como essa meta necessária.
“O problema é maior nos locais onde existem mais hospitais privados”
Há falta de médicos ginecologistas/obstetras em Portugal?
Não. O colégio da especialidade do Ordem dos Médicos tem referido várias vezes que estamos bem nos rácios. Existem é situações, que são conhecidas, como a saída de médicos do SNS. Foi o que se passou no Hospital de Braga. O que temos vindo a verificar é que este problema é maior nos locais onde existem mais hospitais privados: Braga, Lisboa. Há mais ofertas de trabalho.
Os médicos saem por melhores salários apenas ou há outros fatores que os motivam a ir para as unidades privadas?
As condições de trabalho também são muito importantes. Aqui em Guimarães, por exemplo, temos olhado muito para as nossas condições de hotelaria que são muito diferentes de um hospital moderno, como é o caso de Braga e de outras unidades privadas que abrem à nossa volta. Se queremos competir com essas unidades, as instalações têm que ser melhoradas. Máquinas de última geração também são uma garantia de sucesso e um fator de atração.
“O SNS e os privados devem trabalhar em complementaridade, mas para isso acontecer eles têm de ter condições iguais e isso não existe”
A pressão dos privados pode ser uma alavanca para o SNS se modernizar?
Eu acho que sim. Se não houver competição não há melhoria. Mas, é preciso ter cuidado. O SNS e os privados devem trabalhar em complementaridade, mas para isso acontecer eles têm de ter condições iguais e isso não existe. Aqui em Guimarães, temos um hospital que foi feito há 30 anos, com um projeto ainda mais antigo. O caso do Hospital de Braga, é uma unidade moderna, com quartos individuais.
No entanto, esse hospital que tem excelentes condições, não tem os meios humanos?
Tem que haver um equilíbrio entre o privado e o público. As expectativas dos médicos de Braga não se verificaram e eles saíram. O sistema público tem que encontrar atrativos financeiros para poder concorrer com os privados. Em Braga as condições técnicas são boas, as instalações também, portanto, houve um problema de competitividade com os privados.
O Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães, inaugurado há 30 anos, alguma coisa fez bem para neste momento servir de apoio ao Hospital de Braga?
As dificuldades, muitas vezes, aguçam o engenho e foi isso que aconteceu. Uma organização muito segura, bom planeamento do trabalho e uma equipa motivada. Também temos médicos que saem, por reforma, ou porque não conseguem conciliar a vida profissional e a vida familiar. O Conselho de Administração tem-nos ajudado a manter as nossas áreas técnicas que são fundamentais.
“Eu tenho ficado com todos os meus internos”
Já se viu na posição de ter que convencer um jovem médico a escolher o SNS em detrimento de ir para a medicina privada?
Eu tenho ficado com todos os meus internos. A conversa que tenho com eles é no sentido da necessidade de se manterem ligados ao SNS, porque é uma escola. A formação não termina no dia em que fazem a especialidade.
Mas, se o SNS é a escola onde os médicos podem crescer, o que é que mudou para que eles agora saiam para os hospitais privados?
Salvo em casos muito pontuais, os hospitais privados ainda não dão internato completo em Ginecologia e Obstetrícia. Podem fazer-se algumas valências pontuais. Mas as unidades privadas evoluíram e hoje têm tão bons médicos como no SNS, no entanto, os hospitais públicos continuam a ser a escola. Até porque, nos hospitais privados nunca há todas as valências, como aqui. Um médico no privado fica condicionado. Há áreas nos hospitais privados com qualidade, mas não todas. Por exemplo, aqui no Minho, não há nenhuma unidade privada a fazer ginecologia oncológica, se um médico gostar dessa área tem que ficar no sistema público.
A Comissão de Avaliação da Resposta em Urgência, de que faz parte, recebeu como missão avaliar os recursos disponíveis, antecipar necessidades e assegurar o funcionamento do sistema. Qual é ponto de situação do trabalho desta equipa?
Foi feita uma avaliação dos recursos humanos de cada um dos hospitais. Aqui na Região Norte, verificamos que todos têm algumas fragilidades, mas também que todos se conseguem organizar de forma a cumprir com as suas obrigações. O hospital mais carenciado, de forma abrupta, é o de Braga. Esta análise permite detetar com antecedência problemas que podem surgir. Foram estabelecidos níveis de contingência que facilitam a resposta dos hospitais. Concluímos que os hospitais recetores estão em condições de receber os doentes que chegam dos que estão em contingência.
“Todos nós estávamos a trabalhar um pouco abaixo das capacidades máximas. Os partos diminuíram”
O acréscimo de partos, em Guimarães, pelas grávidas que são enviadas de Braga causa problemas ao funcionamento do serviço?
Não. Todos nós estávamos a trabalhar um pouco abaixo das capacidades máximas. Os partos diminuíram. Neste momento temos mais 12% que o espectável, aqui em Guimarães, mas disso, apenas dois ou três por cento é que será devido aos partos de mães de Braga. Não tem havido problemas de resposta, de uma forma geral. É óbvio que pode haver uma vaga que leva o serviço ao limite, porque nem tudo é programável. Esta semana tivemos um dia com 14 partos e isso é quatro ou cinco partos acima da nossa média.
Vê a contingência do Hospital de Braga como uma situação pontual ou será o “novo normal”?
Não, eu espero que tudo se resolva com celeridade. Entraram agora dois novos médicos no concurso. É óbvio que havia quatro vagas e só conseguiram preencher duas. Já aumenta a disponibilidade do serviço. Uma das medidas que está em cima da mesa é a uniformização do pagamento por hora no recrutamento de médicos tarefeiros, isto pode levar a uma estabilização das equipas.
Portugal conseguiu atingir baixas taxas de mortalidade infantil e materna. Contudo, parece que a situação se está a inverter e esses números estão a piorar. Devemos preocupar-nos, isto é um reflexo da degradação do SNS?
É preciso olhar para esses números com algum cuidado. Aguardo a conclusão dos trabalhos que estão a ser feitos sobre o assunto. Depois poderemos debruçar-nos sobre o que eles representam. Quando falamos de números tão baixos, um ou dois casos alteram as estatísticas. Nós aqui, no Hospital de Guimarães, mantemos as mesmas taxas. Mas, devemos estar atentos, perceber o que nos dizem esses números para, se alguma coisa não estiver a ser bem feita, alterarmos.