As tragédias surgem invariavelmente sem aviso prévio, implodindo a normalidade dos dias num àpice de segundo.
A mesma velocidade a que uma bala é disparada e faz uma vítima, o percurso da bala e da vida humana a cruzarem-se nesse àpice, num ato voluntário ou involuntário de quem apertou o gatilho, o som rude a ressoar pelas redondezas, a aflição que faz disparar num segundo também o som do batimento cardíaco acelerado, na surdina morna das entranhas de quem ouviu.
Quando um tiro é um acaso infeliz, a revolta é gigantesca; se são crianças envolvidas o cenário é dantesco.
Todos são vítimas numa tragédia acidental ocorrida no seio de uma família.
Dois meninos amigos, em brincadeira de imitação de adultos, em que um dispara sobre o outro e por obra da desgraça o tiro é certeiro, é um episódio de contornos indiscritivelmente tristes, um capítulo da vida que desvia definitivamente os rumos seguidos até então por direções de ladeiras íngremes e enlameadas, entre veredas labirínticas de emoções negativas.
O tiro que foi certeiro no menino, foi certeiro no amigo, foi certeiro no coração de todos os familiares. Foi certeiro também no coração dos pais que imaginaram a tragédia a envolver um dos seus filhos.
Não estamos nem por sombras em pé de igualdade com outros países onde circulam balas perdidas em guerras civis e favelas, nem estas ocorrências são frequentes noutros países onde as armas ilegais existem em qualquer lugar.
O que não pode levar a assumir de ânimo leve o acontecido, consequência não só da existência da arma acessível à mão de crianças, mas também de uma sociedade civil que ainda não se mobilizou o suficiente para impedir a exibição de violência gratuita nos noticiários televisivos ( onde os olhos infantis bebem imagens de sangria desatada à hora de jantar, pelo que há uns meses iniciei uma petição para a inclusão de um símbolo de “imagem nociva para menores” no écran da TV, na altura em que as mesmas fossem exibidas, e que caiu um saco roto).
Em casa de cada família há que levar a cabo a tarefa ingrata de selecionar os filmes e os jogos de Playstation e de tablets permitidos às crianças. Sem mencionar a necessidade de explicar insistentemente em linguagem adaptada às idades como é perigoso o manuseamento de armas ou instrumentos cortantes, e de uma assertiva e regular transmissão de valores morais, sobre a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado.
Se não for assim, corremos o risco de deixarmos de viver no país sereno de brandos costumes, à beira-mar plantado…