ARTIGO DE OPINIÃO
Manuela Castro
Mestre em Administração Educacional. Doutoranda em Organização e Administração escolar. Instituto de Educação – Universidade do Minho.
No fim-de-semana do 14 de outubro 2023 um muro, assinalado em 2019 pela iminência do perigo que constituía para a segurança das crianças pela comunidade escolar e pela Associação de Pais da Escola Básica de Vieite (Guimarães), cedeu sob o forte temporal que se fez sentir. Felizmente o acidente produziu-se em horário não escolar, evitando prejuízos maiores quer a nível humano, quer a nível material.
Embora os cenários hipotéticos, os “e se…?” contribuam parcamente para um debate produtivo sobre o assunto, é necessário haver uma reflexão urgente em torno da gestão democrática das escolas e de um situacionismo secular que tende a predominar na Administração Pública portuguesa em pleno período democrático.
A qualidade da educação pública está em crescente crise como nos recordam diariamente os noticiários informativos. A escassez dos recursos humanos e materiais e a ausência de uma política educativa capaz de superar visões economicistas e partidárias por parte dos sucessivos governos portugueses denunciam a instrumentalização e secundarização da educação pública.
Longe vão os discursos políticos que viam a educação e a escola como lugar de emancipação social, como um direito dos cidadãos e um dever do Estado constitucionalmente consagrado, um lugar de formação para um cidadão crítico capaz de transcender comportamentos passivos herdados de um passado autoritário pouco longínquo.
Reduzida a um depósito de crianças que visa fomentar competências e formar força produtiva para servir um mercado de trabalho em constante mudança e oscilação, a escola pública em Portugal encontra-se refém de um ideário gestionário que tende a coisificar o aluno ao serviço de valores empresarialistas como a competitividade, a eficácia e a eficiência. A aceção do valor humano que predomina na educação é, portanto, profundamente utilitarista e economicista.
Por isso, quando surgem questões relacionadas com o valor humano, numa conceção verdadeiramente humanista, estas tendem a não ser tratadas como prioritárias do ponto de vista político. Foi o que sucedeu na Escola Básica de Vieite do Agrupamento de escolas EB 2/3 das Taipas no Município de Guimarães.
Sinalizado desde julho 2019 pela Associação de Pais da dita escola, a instabilidade estrutural de um muro da escola primária preocupava pais, encarregados de educação, alunos, funcionários e professores que exerciam a sua atividade diariamente no espaço em questão.
Em julho 2020 a vereadora municipal da educação visita pela primeira vez o estabelecimento escolar e aciona o protocolo a ser seguido, isto é, comunica formalmente à Proteção Civil. Esta entidade, por sua vez, identifica a gravidade da situação, reconhecendo o perigo de derrocada e veda a zona circundante.
Desde esse momento, o espaço permaneceu vedado, o muro inexoravelmente instável e o discurso dos representantes municipais tornara-se repetitivo, apelando continuamente à paciência e à calma da comunidade escolar, contrastando fortemente com os valores da eficiência e da eficácia, da otimização e celeridade pelos quais o Estado português e o Ministério da Educação se regem e exigem aos seus concidadãos.
Por sua vez, o diretor do agrupamento escolar, figura de poder unipessoal da escola que, ao nível da administração escolar se encontra numa situação solitária e subordinada perante o poder político, reproduzia o mesmo discurso, evidenciando o retrocesso democrático que o Decreto-Lei nº 75/2008 instituiu em termos de gestão democrática das escolas e recordando a afonia da sua voz, resultado do esvaziamento de poder deliberativo e político das escolas para a resolução de questões tão urgentes como este caso.
Os órgãos de gestão educativa do município pareciam encostar-se confortavelmente ao situacionismo e ao conformismo de um Estado secularmente burocrático para justificar a procrastinação da intervenção necessária na escola.
A fundamentação oficial dos representantes municipais apoiava-se nos procedimentalismos burocráticos inerentes ao Estado e à Administração Pública como numa tentativa de naturalizar, normalizar e conformar-se à natureza pouco expedita de um Estado, que há quase 50 anos é de direito e de regime democrático.
A junta de freguesia, por sua vez, refugiou-se no argumento da mudança de cor política nas últimas eleições autárquicas para estrategicamente explicar a falta de celeridade para a resolução da questão por parte do município.
Os órgãos da autarquia local pareciam envolvidos num ping-pong político, lamentando tais Velhos do Restelo o situacionismo – “é o Estado burocrático que temos”, enquanto o muro continuava inexoravelmente a ceder e um direito fundamental das crianças permanecia pendente, nomeadamente o direito à proteção e ao bem-estar, assim como o direito a uma educação de qualidade.
Desesperados perante um poder político municipal que parecia surdo às reivindicações e à urgência do caso, exasperados com o discurso retórico, politicamente correto mas oco que não apontava para o progresso ou para a transformação de uma situação dada pelos representantes como fatalmente imutável, alguns pais chegaram a ameaçar apelar à comunicação social de modo a obter a devida visibilidade pública.
A participação ativa e crítica dos pais fora muitas vezes considerada como ofensiva e alarmista por parte dos representantes municipais, que pareciam preferir ser guardiões deste Mostrengo burocrático ao invés de se colocarem ao serviço do progresso e da mudança estrutural, organizacional e social, tão necessários ao desenvolvimento democrático de uma sociedade.
A 9 de fevereiro 2023, a Associação de Pais da Escola Básica de Vieite informava a comunidade escolar que no dia 2 de fevereiro 2023 houvera uma reunião na qual a representante da Câmara Municipal e os arquitetos responsáveis pela obra, já adjudicada, garantiram que a resolução da instabilidade do muro estava em fase de conclusão, embora ainda dependente da aprovação dos órgãos competentes do município. Segundo eles, não havia risco de perigo maior.
Quatro anos após a sinalização do problema, parecia haver uma luz ao fundo do túnel. Infelizmente no dia 13 de outubro 2023, o muro continuava sem a devida intervenção.
No fim-de-semana seguinte, após o agravamento das condições meteorológicas, o muro cedeu e a sua derrocada evoca, sem sombra de dúvida, uma incisiva metáfora sobre o estado a que Portugal chegou e, embora, este episódio tenha ocorrido num contexto local, não deixa de simbolizar os problemas políticos, estruturais e organizacionais que continuamos a enfrentar a nível nacional.
O muro cedeu perante o gigantismo burocrático do Estado. O muro cedeu perante a inércia, o situacionismo e o conformismo políticos dos representantes autárquicos, que perpetuam heranças organizacionais e estruturais ao invés de se colocarem ao serviço de um ideal verdadeiramente político-democrático de progresso e de transformação social.
O muro cedeu perante a impotência de um diretor de agrupamento, desprovido de autonomia política para poder decidir de facto e atuar no momento oportuno.
O muro cedeu apesar da participação ativa, insistente, formal e informal de um conjunto de pais que apelou, alertou e lutou com as armas disponíveis para garantir a salvaguarda de condições de segurança para os seus filhos.
O muro cedeu perante o olhar incrédulo de uma comunidade escolar, que carrega hoje um profundo sentimento de descrédito sobre os órgãos de poder político que, a nível municipal, tinham o dever de garantir não só a segurança das gerações mais novas, não só a qualidade da educação, mas sobretudo a recetividade às demandas do povo e a sua representatividade junto dos órgãos da Administração Pública.
O muro cedeu e erode igualmente um pouco da democracia quando o poder autárquico e político se coloca ao serviço do conservadorismo e da não superação de heranças organizacionais seculares; quando as escolas continuam reféns do centralismo burocrático do Estado e são esvaziadas de qualquer poder deliberativo capaz de transformar as condições materiais e humanas da educação dos nossos filhos; quando os pais e a comunidade educativa participam ativamente no devir democrático, mas são afrouxados por heranças socioculturais que tardam em desaparecer do inconsciente coletivo português e, colocam os representantes do poder político como guardiões de um sistema centralizado, burocrático, ineficiente, lento e inacessível para os seus cidadãos, o que consequentemente, descredibiliza o poder político e desmotiva e desmobiliza a ação coletiva.
Quando a Organização das Nações Unidas, na sua agenda transnacional para 2030, nos desafia a questionar a solidez das nossas instituições democráticas, quando no panorama educativo português se evoca a possibilidade da municipalização da educação como forma de devolver autonomia às escolas e após esta sucessão de eventos ocorridos a nível microcontextual, termino este texto questionando-me: as autarquias locais e os representantes municipais dispõem de maturidade política e democrática para poder assumir de facto os poderes intrínsecos a algo tão fulcral às gerações vindouras como a educação?
Ou ficará a educação e o ensino público reféns deste ping-pong político-partidário, destes guardiões do poder centralista e burocrático e de uma visão situacionista, irredutivelmente passiva, pouco progressista e visionária, de que “é o país que temos!” e, portanto, antagónica à uma visão democrática da educação pública?