“A melancólica e generosa gente portuguesa”. Premiado jornalista israelita escolheu Cerveira para viver

Igal Sarna já tem o primeiro livro de uma trilogia sobre o Alto Minho traduzido para português
Foto: Gil E. do Lago

“O Meu Alto Minho”

Conheci “O Meu Alto Minho” quando num sábado de feira o seu autor deixou um exemplar na Porta Treze, associação literária sediada no número de porta que lhe deu o nome, numa das principais artérias da cultural vila (Nova) de Cerveira. O livro era uma oferta a outro autor, o fundador da Porta Treze, o escritor Luandino Vieira (Prémio Camões 2006 – que rejeitou).

“O Meu Alto Minho” é o primeiro livro (para já o único traduzido para português) de uma série de três sobre o Alto Minho, do escritor israelita Igal Sarna. A obra descreve pessoas, paisagens, rotinas, lugares, aldeias e comunidades. O quotidiano de um Minho profundo à beira-mar.

“Os habitantes são gente devota, que adora bacalhau, lampreia e vinho verde e remata refeições com um cálice de aguardente”, conta no livro o autor sobre esta (nossa) gente que habita o recanto mais a noroeste de toda a Europa.

“Paraíso esquecido”

Igal Sarna (Telavive, 1952) chegou a Vila Nova de Cerveira em 2017. “Um viajante encontra o seu porto de abrigo no paraíso esquecido do Norte de Portugal”, apresenta na capa o subtítulo.

Livro “O Meu Alto Minho”. Foto: Reprodução da capa

Este primeiro livro parte da premissa que foi a odisseia de reconstruir uma casa na freguesia de Candemil.

“Escrevi-o durante passeios á toa por velhas estradas rurais, abrigando-me nos vestíbulos de mansões em ruínas, nos quintais de casas há muito abandonadas, cujo acesso os espinhos das silvas procuravam vedar”, lê-se a páginas tantas.

Como todos os estrangeiros, Igal vê com olhos de estrangeiro o mundo onde é estrangeiro, reflectindo sobre aquilo que os minhotos há muito já sabem, que ás vezes gostam que os relembrem, e sobre aquilo que por vezes os anfitriões ainda não tinham reparado. 

O “Conflito” e o recomeço

De estatura mediana e cabelo alvo, de óculos que lhe conferem um ar perspicaz, que se confirma, à frente de um olhar atento, Igal tem um passado marcante como jornalista e uma carreira já relevante como escritor.

Igal Sarna vive em Vila Nova de Cerveira desde 2017. Foto: Gil E. do Lago

Falámos onde já é costume vê-lo na companhia do seu portátil, no salão de chá da vila, na principal Rua Queirós Ribeiro. A uma mesa do café de cores cândidas com sofás azuis claros e papel de parede com tropicais ilustrações de tacuaras e araras, estilo anos 70, conversámos em inglês, que Igal ainda não é assim tão “português”.

Começa por explicar que após um “conflito”com Netanyhau, na época (e actualmente) primeiro-ministro de Israel, resolveu sair do seu país. Começava a ser-lhe sonegada a possibilidade de continuar a exercer a sua profissão. Ainda assim acha que foi uma oportunidade, quase uma redenção criativa.

“Foi uma boa altura para recomeçar, fazer um reset”, explica.

“Em Israel era conhecido, amava o meu trabalho. Muita gente conhecia-me”, aponta.

Com 35 anos de carreira e um Sokolov (2011) – um dos mais prestigiantes prémios de jornalismo em Israel, parece pretender não olhar muito para trás.

“Depois vim para cá e foi um bom recomeço, ninguém nos conhece, não fazem ideia de quem somos, e começámos do zero, e essa sensação é muito libertadora, mágica, reveladora até. Parece que voltámos a ser nós mesmos outra vez, sem amarras”.

E como que justifica como uma inevitabilidade esta mudança: “como israelitas estivemos sempre em transumância”. 

“Um amor á primeira vista”em Candemil

Quando decidiu sair de Israel, Igal Sarna e a companheira procuraram em vários destinos europeus o que o coração pedia. Queriam mais a sul. Clima temperado, se possível não longe do mar, diferente um pouco de Israel mas não perdendo essas memórias nativas. O Alto Minho foi uma inesperada paixão. Uma escolha influenciada pelo amigo Zadok, um internacional escultor israelita, que reside em Cerveira há vários anos.

Igal e a esposa não queriam destinos mais comuns como Grécia ou Itália, ainda passaram  por terras de Andaluzia (Espanha) mas: “era muito quente, no verão era insuportável, Israel também é assim quente”. Ainda estiveram de visita a um amigo em Salamanca mas quando passou a fronteira e conheceu Cerveira apaixonou-se pelo alto norte português. Assim como pela casa que hoje é o seu lar luso.

“Foi logo a primeira que a agente imobiliária nos foi mostrar”, diz demonstrando certo entusiasmo (o que é raro transparecer).

“Senti que era ali. Foi amor á primeira vista, tinha algo de quase místico”, explica. E ganhou também um amigo para a vida. Gilberto, o arquitecto da reconstrução foi o primeiro alicerce de Igal em Cerveira, prenúncio do que o israelita foi encontrando por cá.

“Aqui as pessoas são simpáticas mas não se metem na tua vida, não é como Itália, onde querem saber tudo, sempre a chatear”.

No livro, Igal faz daqueles elogios quase que condescendentes que o português gosta, mas que se factuais não deixam de ser análises assertivas: “humildes e dignos”. 

Terras de “Sarna”

Além das características minhotas que conquistaram o coração do forasteiro, a chegada de Igal a Vila Nova de Cerveira parecia já estar escrita.

“Sabe que o meu nome (apelido) em português não é uma coisa boa não é?”.

Esboço um sorriso educado. Sim, sarna não é bom. Só que “em hebreu sarna quer dizer cervo!”, explica-me.

Então Sarna, o Igal, só podia abrigar-se no concelho que que deve o nome e o símbolo ao animal que em manadas habitou durante séculos (ou milénios) os montes e serras de Cerveira, ou ao guerreiro que conta a lenda se vestia de cervo para liderar as suas tribos onde hoje é Cerveira.

“Escrevo com o coração”

Como experiente jornalista Igal sabe como chegar à informação, como ligar as conversas. Mas não é uma questão técnica, lidando com pessoas é muito mais uma questão de empatia. Uma mais valia em Portugal.

Igal Sarna mostra a sua obra “O Meu Alto Minho”. Foto: Gil E. do Lago

”Em Israel, cinco minutos chegam para conhecer quase tudo de uma pessoa. Se se for taxista em Telavive sabe-se tudo, mesmo a vida íntima.. a mais íntima. Os israelitas contam tudo. Lá não se guarda tanto a privacidade como aqui”, explica.

Apesar de uma maior reserva dos minhotos, o escritor consegue de uma forma benévola que eles lhes confidenciem o que necessita para as suas estórias.

“Falo de mim, também me exponho, e a pessoa depois também vai começando a abrir-se”, é uma questão de “lealdade recíproca”.

“Eu falo com o coração e escrevo com o coração, por isso aqui me sinto livre, aqui posso escrever com o coração, em Israel já não consigo isso”.

“Há muita intimidade com a palavra, as pessoas depois sentem-se à vontade”.

Como exemplo dá o protagonista do seu segundo livro, um“herói” da vida, pescador de Caminha que Igal descobriu.

“Eu não falo português, ele não fala inglês nem francês, e conseguimos comunicar, percebemo-nos, somos como que confidentes já”.

É sobre essas pessoas que são história que gosta de escrever.

A burocracia da boa vontade

Parte do primeiro livro é sobre o paciente processo que é o de (re)construir uma casa. Em Portugal. Igal explica bem no livro as interrogações pelas quais passou devido aos constantes adiamentos em diferentes fases da intermitente obra, da “luta” que foi a essa epopeia, com os profissionais por vezes a desaparecer por dias ou semanas. Talvez fosse aí que aprendeu uma das maiores características para se viver neste rectângulo: ser paciente.

“Aqui as coisas vão devagar, têm o seu tempo, aprendi a ter essa calma”, nota. Que remédio. Mas surpreendentemente, no que toca a um dos nossos maiores cartões de visita, para portugueses e estrangeiros, Igal ainda não identificou esse papão chamado burocracia(s). Deixa até elogios: “quando se compra um imóvel em Israel, tem de haver quase uma espécie de memorando. Aqui são só necessários dois advogados e um notário. Na América por exemplo, para fazer isto, são necessárias duas equipas de vários advogados para ambas as partes”.

Confessa que até desconfiou do negócio quando só viu três ou quatro pessoas para formalizar a compra do imóvel. “É fácil”, diz. “Se tivermos alguém que nos guie para fazer as coisas, que nos dê certas indicações, não noto muita burocracia”. “A solicitadora que nos ajudou explicou-nos tudo, ajudou-nos em tudo”. Mas, há uma palavra que faz a diferença para Igal, sobretudo quando aparece esse papão chamado burocracia: “há boa vontade”.

Aqui “há boa vontade, até pode não ser fácil, mas as pessoas tendo boa vontade ultrapassam tudo, tornam fácil, e acho que cá, se calhar se houver essa burocracia pesada, é dirimida pela boa vontade”.

Os Avós

Outra das grandes características portuguesas e minhotas que Igal sublinha é a forte presença dos avós nos núcleos familiares. Essa bendita presença que é natural aqui, em Israel infelizmente já não existe para a sua geração.

“Aqui muitas das pessoas com quem falo cresceram com os avós, substituindo os pais quando eles emigraram. Em Israel, por causa do que aconteceu, não há muitas avós, morreram todos no holocausto”.

Por isso para Igal é uma singularidade a forte presença dos avós nas famílias.

“Aquela geração desapareceu, só voltou com os nossos pais”, refere.

“O Zé (Manel), por exemplo”, esse pescador “herói” de Caminha, “tinha muita cumplicidade com os avós, só gostava dos avós, foi criado por eles”.

“Palestina tem direitos iguais”

O que originou a emigração do escritor israelita não foi uma questão específica, política, mas porque o seu trabalho tornou-se incómodo. Sem politizar as questões destaca no entanto que teve sempre uma militância activa, pacífica. Uma militância exercida já no seu trabalho: “como jornalista sempre escrevi histórias humanas, nunca me interessei pela política, mas preservei sempre a minha actividade cívica”.

Igal pertenceu a movimentos pacifistas e diz-se ainda hoje “interventivo” nas redes sociais, em prol de valores humanos e de tolerância.

“Palestina tem direitos iguais, não sou apologista da constante vitimização de Israel, estou cansado disso, tivemos bastantes vicissitudes ao longo da História, é verdade, mas a Palestina tem o mesmo direito a existir, é o que defendo”.

“Falei muito de Gaza. Pessoas são pessoas. O que me interessa são as histórias, a humanidade, somos todos pessoas, todos sofrem, passei muito tempo em Gaza e sei o sofrimento e o desespero de lá”.

Igal tem uma certa empatia porque há que ter uma empatia pela humanidade. Governos á parte, no fundo temos todos os mesmos anseios e medos. Igal é israelita porque os pais tiveram de fugir da sua Polónia natal em 1933 devido à perseguição nazi no período de ascensão fascista. 

“O ‘louco’ que pode ser uma esperança”

Sobre a actualidade, em que é incontornável falar de Israel, sempre no cerne de um dos mais antigos conflitos regionais da Humanidade, bem como outros conflitos que afligem o mundo, Igal acha que pode haver alguma sanidade com a loucura.

Trump é um “crazy”: “como dizem aqui crazy? Tolô (com sotaque)?”, pergunta. Sim, “crazy” em português é tolo, louco, maluco.

“Trump e Netanyhau parecem vir de famílias onde o autoritarismo e a brutalidade foram exemplos, eles são assim porque se calhar respeitavam os pais mas os pais não respeitavam os filhos”, diz. Mas Igal tem esperança que com tanta desesperança um “crazy”pode trazer alguma solução pela sua imprevisibilidade. Porque até agora nada nem ninguém conseguiu mudar muito. Sobretudo paz.  

A literatura       

Igal vai em 15 obras publicadas, entre novelas e não ficção, traduzidas para inglês, francês e italiano. Com “O Meu Alto Minho” agora também em português.

Igor Sarna é autor de 15 obras publicadas. Foto: Gil E. do Lago

Embora não seja uma tarefa simples ser escritor, para Igal, como experiente jornalista, parece uma evolução normal. Até porque desde que se conhece sempre conviveu com palavras escritas toda a vida. O pai foi professor de literatura.

“Até os meus filhos conhecem a história do meu primeiro grande amor porque está escrita, tenho um livro que fala disso”.

“Escrever é uma maratona, mas como jornalista de investigação já escrevia muitas páginas, extensos artigos, histórias de vida”, esclarece. É o que continua a fazer com personagens reais. Faz o que agora se chama de literatura não-ficcionada.

Igal já tem o seu segundo livro da trilogia minhota publicado, para já só em hebraico. Tem como título e protagonista uma “personagem” que conheceu ao escrever a primeira obra. “O Milagre do Zé” é sobre esse pescador de Caminha, pertencente a uma linhagem de pescadores, que labutou no Mar do Norte, filho de “Faca Negra”, que de afiado utensílio esventrava a negritude das entranhas do bacalhau na Noruega.

O escritor israelita vai sempre descobrindo curiosidades, histórias, particularidades. Das pessoas que são o povo que o acolheu.

“Há pouco descobri Pedro Homem de Mello (poeta que viveu muitos anos em Afife), interessante, a resiliência que não deveria ser necessária”. Não pertencer aos canônes “que o Portugal de Salazar ditava na altura não devia ser fácil”, reflecte. 

“A melancólica e generosa gente portuguesa”

A Israel não sabe se vai voltar definitivamente, vai lá periodicamente visitar os filhos (que já vieram cá). Só sabe que hoje está cá, gosta de estar em Portugal, no Alto Minho, por enquanto. Não sabe ainda bem o que é por enquanto, mas com uma casa que idealizou sabe que vai ser bem por enquanto.

Sobre a sua nova morada diz no livro que é: “terra única abrigada por um céu de milagre”, com “a melancólica e generosa gente portuguesa, com os seus segredos, o mistério das suas casas abandonadas e a modesta beleza diária das suas paisagens”.

Em Cerveira gosta da praia da Lenta, da Ínsua em Caminha, com a sua língua de areia curvilínea onde o Minho doce encontra o salgado Atlântico. Lembro-lhe as lagoas na zona do Pincho, na freguesia de Âncora: mostra-se interessado e diz que vai “investigar”.

Igal está sempre à espreita de História, de contar uma grande estória, ou pequenas estórias que depois fazem uma maior. De estórias para a história. E depois faz história com essas estórias.

 
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