Nas traseiras da casa de Manuel Baptista, em Creixomil, Guimarães, num pequeno anexo, cabe toda a Cidade Berço. Ali está o santuário da Penha, a igreja de Nossa Senhora da Oliveira, o Paço dos Duques de Bragança, o Castelo e uma série de outros edifícios simbólicos da cidade. Tudo miniaturizado pelo artista, que já não tem mais espaço.
Não sabe de onde lhe veio o jeito para os trabalhos manuais. Sempre se lembra de ter talento para construir coisas. “Em criança era eu que fazia os meus brinquedos. Os meus carrinhos de rolamentos eram sempre os melhores”, recorda. Na década de cinquenta, praticamente não havia classe média em Portugal, ou se era rico, uma minoria, ou se era pobre, como quase toda a gente.
Manuel Baptista era pobre, foi criado pela avó até aos oito anos, em Aveleda, Braga, nessa altura veio viver com os pais em Guimarães. Era um tio que lhe pagava os estudos. “Sempre que fazia qualquer coisa de trabalhos manuais, saia melhor que o professor. Na escola não me aproveitaram”, lamenta-se. Fez o segundo ano da escola industrial e viu-se obrigado a deixar a escola. “Era o meu tio que me pagava os estudos e a minha tia não tinha muita vontade, torcia o nariz”, recorda. “Quando precisava de alguma coisa para a escola e passava lá por casa a pedir, ela despachava-me, mandava-me voltar mais tarde”. Chegar às aulas sem material era um passaporte para ser posto na rua. Cansou-se e acabou por desistir.
Os anos de escola, apesar de tudo, não foram em vão. Numa altura em que uma grande parte da população portuguesa era analfabeta, saber ler e escrever já era uma grande vantagem. O primeiro dinheiro, no início da década de 1960, ganhou-o na porta do posto médico, a preencher boletins. “A empregada do posto médico era minha tia e encaminhava-os para mim. Chegava a ter fila. Davam uma coroa, duas, se davam cinco era uma festa”, relembra com um sorriso no rosto. “Naquela altura, chegava a tirar por dia mais que o meu pai”.
Mas o povo foi tendo cada vez mais instrução, se não eram os pais eram os filhos, ou os netos que preenchiam os papéis em casa e o negócio começou a escassear. Meteu pés ao caminho, primeiro como empregado de sapataria, mais tarde numa papelaria. Na papelaria estava em casa: tintas e pincéis, guaches, canetas e marcadores, lápis de todos os tamanhos e papéis variados. Além de conhecer tudo aquilo, gostava imenso. Por isso ficou 22 anos, foi à tropa e voltou para lá. Só mudou de emprego, muito mais tarde, quando um amigo o convidou para a sua empresa, a Pizarro, na área da lavandaria, tinturaria, estamparia e acabamentos. “Foram os empregos que tive. Quando me reformei decidi que não me ia consumir mais”, diz com um sorriso.
Aos 60 anos deixou de trabalhar, mas foi de lá para cá que realmente se dedicou ao artesanato. “Antes fazia pouco, fui fazendo sempre, mas era diferente. Agora, em vez de ir para o café, venho para aqui e ponho-me a fazer estas coisas”, diz olhando à volta o espaço apertado que lhe serve de oficina. Uma marquise nas traseiras da moradia, serve de morada ao peixe vermelho e ao canário, de armazém à lenha para o inverno e esconde a entrada apara a cave. O pouco espaço que resta – duas pessoas têm de se esforçar para se movimentarem sem deitar nada ao chão – é o atelier e o showroom de Manuel Baptista.
As paredes estão forradas com telhas decoradas. “Já fiz centenas”, fica pensativo, “bem centenas talvez não, mas dezenas!” Na parede há pelo menos trinta e, antes de a pandemia ter acabado com o turismo, vendia cinco a sete por semana, através de uma loja no centro de Guimarães, com quem tem uma parceria. “Talvez sejam mesmo centenas!”
Tem horror ao trabalho em série. “O que me dá gosto é fazer a primeira peça. Depois, quando tenho de repetir, já não é a mesma coisa”. Certa altura, pediram-lhe para fazer cem cópias de uma miniatura da Torre da Alfândega (aquela onde se lê: Aqui Nasceu Portugal), recusou. “Não me ia dar gosto”, reconhece. Fez uma, achou-a despida demais e acrescentou-lhe uma Cantarinha dos Namorados. Para imitar o pó de mica da decoração, usou uma areia branca que serve, nas lavandarias, para dar o ar usado às gangas.
Aquilo que para uns é lixo, madeira para aceder a lareira, ou um seixo da praia, para Manuel Baptista é matéria-prima. O genro trouxe para casa uns restos de madeira, de moldes de sapatos, para pôr na lareira e logo nasceu um D. Afonso Henriques estilizado.
Na família ninguém lhe acompanha o jeito. “O Sandro (o filho) faz uns desenhos, mas estas coisas sou só eu”, lamenta. Reconhece que o neto, de 13 anos, tem uma forma de olhar para os objetos que denota sensibilidade. “Às vezes pego num bocado de madeira e pergunto: que é que isto parece? Ninguém responde, só ele é que é capaz de ver alguma coisa”.
Os trabalhos de Manuel Baptista são de um detalhe minucioso, têm pormenores que resistem até à observação mais próxima. No modelo da Basílica de São Pedro, no largo do Toural, é possível espreitar pelas portas e ver os azulejos do átrio da entrada. É um trabalho de paciência e imaginação. Duma lata de refrigerante se faz um escudo para D. Afonso Henriques, de uma toalha de papel para bolos, uma linda cortina bordada, de um pedaço de arrame as ferragens de uma varanda. “Às vezes vou para a cama a pensar como resolver um problema de construção”.
Durante a maior parte da sua vida, não vendia nenhum dos trabalhos, acumulavam-se pela casa e iam constituindo uma galeria. Com a reforma e o tempo a sobrar, começou a ir a feiras de artesanato. “Tirei o cartão de artesão. Na altura vieram cá os técnicos do Instituto de Emprego e perguntaram-me com que escala trabalhava. Disse-lhes que com nenhuma. Nem sei trabalhar com escalas! Olho para a fotografia do edifício no livro e vai a olho. Se não sai bem, faço de novo”, esclarece.
A peça mais difícil que já fez, afirma, foi o santuário da Penha. “Tive que repetir a torre três vezes, não acertava com o tamanho”, confessa. Até há uns anos nem sabia que podia fazer estas reproduções com tanto detalhe. “Já tinha feito barcos para meter em garrafas, mas isto é diferente”. Um dia pediram-lhe para fazer uma miniatura da Caso do Carmo, primeiro hesitou, mas acabou por aceitar. A pessoa que fez o pedido ficou muito satisfeita e Manuel Baptista partiu desse para outros edifícios da Cidade Berço. Agora já não precisa de uma encomenda para lançar mãos à obra.
O santuário da Penha foi um projeto para matar o tempo durante a pandemia. Quem vê a peça percebe a dificuldade que envolveu, os vários volumes e as diferentes cores e texturas da pedra, tudo é percetível no modelo feito principalmente em cortiça, mas recorrendo a outros materiais sempre que os detalhes a isso obrigam, como no caso dos sinos.
Aos poucos uma cidade de Guimarães em miniatura vai ganhando forma no atelier de Manuel Baptista. “Projetos? Entreter-me, passar o tempo, divertir-me”.