Sá de Miranda. Vila Verde torna “pop” o pai do Renascimento em Portugal

Já começou a Feira Quinhentista
Foto: Rui Dias / O MINHO

Arrancou, na manhã desta sexta-feira, mais uma edição da “Feira Quinhentista – Sá de Miranda por Terras de Vila Verde”. O Município celebra, desta forma, o facto de o poeta e dramaturgo ter vivido e produzido uma parte substancial da sua obra em Duas Igrejas, no extremo norte do concelho, junto às margens do rio Neiva.

A feira prolonga-se até domingo com um vasto programa que inclui  declamação de poesia, dança, teatro, artes circenses, falcoaria, exposição de armas, cortejo e gastronomia.

A presidente da Câmara de Vila Verde, Júlia Fernandes, professora de Português- Francês, lançou mãos ao projeto de reavivar a memória de Sá de Miranda quando ainda dava aulas e trouxe o projeto para a governação. Sepultado em Amares, onde viveu os últimos anos da sua vida, o poeta que inaugurou o Renascimento em Portugal, é recordado nos dois concelhos vizinhos.

Foto: DR

Em Duas Igrejas – hoje integrada na União de Freguesias da Ribeira do Neiva – a primeira pessoa a quem perguntamos pela casa de Sá de Miranda, não hesitou em apontar o caminho para a Casa do Côto. “Mas aquilo está em muito mau estado. O mato tomou conta das paredes”, avisou. É fácil perceber o que é que encantou o poeta e o fez deixar as intrigas da corte, em Lisboa, para se refugiar neste lugar, por volta de 1530. Se há lugar onde assenta perfeitamente a expressão “verde Minho” é este vale.

Foto: Rui Dias / O MINHO

A casa senhorial que era o centro da comenda do intelectual renascentista está de facto ao abandono e é muito difícil de encontrar, mas o sítio não perdeu nenhum do encanto que teria no século XIV. Inicialmente o rei D. João III, que tinha grande estima pelo poeta, agraciou-o com a Comenda de S. Gião de Mouronho, no concelho de Tábua, perto de Coimbra. Mas, Sá de Miranda viria a trocar esta primeira comenda pela de Duas Igrejas.

Injustiçado por ser contemporâneo de Camões

“Foi aqui, bem junto do rio Neiva, que Francisco de Sá de Miranda concebeu e compôs a maior e melhor parte da sua obra literária”, refere o investigador José de Sousa Machado. Sá de Miranda (1487-1558) é um poeta injustiçado por ter sido contemporâneo do nome maior das letras portuguesas, Luís Vaz de Camões (c.1524- 1579[80]). Ao contrário do autor da epopeia marítima dos portugueses, que foi um boémio, aventureiro, viajante e um soldado, Sá de Miranda era um intelectual e, até certa altura, foi um homem da corte. 

Todavia, apesar da profunda amizade que o unia a D. João III, afastou-se de Lisboa, ao que parece por não suportar a frivolidade das intrigas da corte. A partir de Duas Igrejas, não deixou de aconselhar o rei e ficou célebre a sua Carta a D. João III, recheada de conselhos e avisos sobre a administração do reino. Era um homem frontal e foi muito crítico da empresa dos Descobrimentos: “Não temo de Castela,/ donde ainda guerra não soa,/ mas temo-me de Lisboa,/ que, ao cheiro desta canela,/ o Reino nos despovoa”, diz na carta a António Pereira, senhor de Basto.

Igreja de São Martinho de Carrazedo, onde está sepultado Sá de Miranda. Foto: Rui Dias / O MINHO

Prova que não era um homem vulgar, é que, numa época em que não eram vulgares os casamentos por amor, Sá de Miranda fugiu à norma. “Era em grande diferença / se casaria ou se não; / houve de sair sentença / que a só uma o coração / a amores desse licença. / Isto dito, Amor mais raro / deu sinal como era ali; / outro som do coldre claro, / outro das flechas ouvi”, diz numa carta ao seu parente e amigo João Roiz de Sá de Meneses, pouco antes de casar e de ir viver para terras do Neiva.

Cruzou-se com Gil Vicente na corte

Filho de um cónego da Sé de Coimbra e de uma senhora de nobreza, solteira, esta condição permitiu-lhe ter acesso a melhor educação, provavelmente no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde nasceu. Mais tarde terá seguido para Lisboa, onde então funcionava a Universidade, para estudar Leis. Na corte cruzou-se com Gil Vicente, o nome maior da dramaturgia portuguesa. O próprio Sá de Miranda escreveu duas comédias em prosa: : “Os Estrangeiros” e “Os Vilhalpandos”.

Foto: Rui Dias / O MINHO

Em 1516, Sá de Miranda (já doutor) surge como autor de cantigas, vilancentes e esparsas, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, todas na chamada “medida velha”. Entre 1521 e 1526 o poeta fez uma viagem a Itália, onde aprendeu o decassílabo, assim como as composições em tercetos e em oitavas e os subgéneros poéticos soneto, ode, canção, écloga e sextina. Era isto que se chamava a “medida nova”, a própria comédia em prosa é de inspiração italiana, rompendo com a farsa vicentina e, talvez por isso, acabando por não ter muito êxito. 

Trouxe as ideias do Renascimento para Portugal

Sá de Miranda é reconhecido como o introdutor do Renascimento nas Letras portuguesas. É em decassílabo (verso de dez sílabas) que Camões, que nasceu por altura da viagem de Sá de Miranda a Itália, viria a escrever, mais tarde, os Lusíadas. “A contemporaneidade com Camões é uma das razões para que Sá de Miranda seja tão pouco conhecido pelos portugueses. Ele é mais estudado nas universidades estrangeiras do que cá”, lamenta a presidente da Câmara de Vila Verde.

Júlia  Fernandes começou a interessar-se pela figura de Sá de Miranda quando ainda dava aulas de Português-Francês. “Trabalhava com os alunos sobre os conteúdos do poeta”, recorda. Uma vez à frente dos destinos do concelho, acabou por criar a Feira Quinhentista para aproximar o poeta do povo, com periodicidade bienal, alternando com a Bienal Internacional de Arte Jovem.

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“Escolhemos maio para a nossa Feira Quinhentista porque, a 22, comemora-se o dia do autor português”, esclarece a presidente da Câmara. O facto de o poeta ainda estar vivo em maio do ano em que veio a morrer, 1558, também contribuiu para a escolha da data.

Entre Vila Verde e Amares

Conhece-se com bastante aproximação a data da morte de Sá de Miranda, já relativamente ao local, subsistem dúvidas. Nos últimos anos da sua vida, muito marcados pela morte da esposa amada e pela perda do filho primogénito, na aventura de D. Sebastião em Alcácer Quibir, o poeta viveu na Quinta da Tapada, na freguesia de Fiscal, em Amares, não muito longe de Vila Verde. Poderá ter morrido ali, mas não é certo. Há um soneto do amigo, vizinho e admirador, Diogo Bernardes, que o coloca em Duas Igrejas na altura do falecimento, contudo, poderá ter sido apenas uma liberdade poética por Sá de Miranda ter sido tão feliz naquele lugar.

Quinta da Tapada. Foto: Rui Dias / O MINHO

Em todo o caso, Sá de Miranda é, atualmente, celebrado e acarinhado nos dois concelhos, Vila Verde e Amares. Junto à igreja de São Martinho de Carrazedo, em Amares, para onde o seu corpo foi transladado por um dos filhos, há um busto do poeta. Na Quinta da Tapada, onde o poeta viveu os seus últimos anos, produzem-se vinhos e a casa senhorial e a capela, ao contrário da de Duas Igrejas, está magnificamente preservada.

Foto: Rui Dias / O MINHO

Ao longo dos próximos dois dias, o povo de Vila Verde e os visitantes fazem do Poeta da Ribeira do Neiva, como foi chamado, uma figura popular. Os alunos de diferentes níveis de ensino e diversas organizações associativas juntam-se para reeditar a Feira Quinhentista dedicada a Sá de Miranda.

Foto: Rui Dias / O MINHO

No centro de Vila Verde funciona o espaço de exposição e feira em ambiente inspirado no século XVI, com a participação de artesãos, mercadores e gastrónomos, trajados e em tendas ou bancas a retratar os usos, costumes e modo de vida daquela época.

Foto: Rui Dias / O MINHO

Vai acontecer um Sarau Cultural com diversos momentos que serão proporcionados pelas escolas do concelho. O cortejo régio, que tem lugar na tarde de domingo, com desfile de mais de uma centena de figurantes e representações das personalidades reais e do povo da época, será um dos pontos altos do programa.

Este texto foi composto recurso a informação compilada de várias fontes, principalmente do livro “Sá de Miranda – Poeta do Neiva”, uma edição da Câmara Municipal de Vila Verde, de 2009.

 
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