Subiram à serra de enxada para salvar uma das alcateias de lobo-ibérico “mais instáveis” do Alto Minho

Restauro ecológico em Paredes de Coura contou com mais de 100 voluntários
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Enxadas ao ombro e até à serra é sempre a subir. Pés ao caminho. “Estamos em pleno território de uma alcateia de lobo-ibérico, a da Boulhosa”, indica o investigador Francisco Álvares. Mais de uma centena de voluntários juntaram-se no sábado em Insalde, freguesia a norte da vila de Paredes de Coura, para realizar trabalhos de restauro ecológico numa encosta da serra que estava dominada por um matagal, essencialmente composto por tojo. 

A ação, dinamizada pelo projeto europeu Life Wild Wolf e pela associação Amigos da Montanha, com o apoio da autarquia e do agrupamento de escolas local, pretende regenerar uma pequena parcela de terreno, na encosta de uma serra em que o lobo-ibérico (Canis lupus signatus) se reproduz.

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

A ideia é serem criadas “condições na montanha para albergar melhor as populações das presas naturais do lobo, que são os corsos, os veados, o javali e evitar que o lobo tenha que vir às aldeias procurar alimento”, explica o investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO), da Universidade do Porto, que coordena os trabalhos para o dia.

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Os voluntários, a maioria mobilizados de autocarro pela associação barcelense Amigos da Montanha, repartem-se em grupos. Uns abrem buracos na montanha recém-desmatada para plantar nove espécies de árvores diferentes. “Temos de colocar as árvores onde elas mais gostam, bétulas e aveleiras junto à linha de água, carvalhos e sobreiros mais em cima”, explica o cientista aos voluntários.

Francisco Álvares, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO), da Universidade do Porto. Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Foram plantadas 120 unidades numa pequena parcela de um terreno baldio ainda próximo do casario. É o início de um trabalho que o projeto Life Wild Wolf quer estender até ao cimo da serra.

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Carvalhos “já foram embora há muito tempo”

Outros, mais acima, abrem buracos mais pequenos para colocar bolotas. Foram apanhadas pelos alunos das escolas de Paredes de Coura nos carvalhos de grande porte que ainda resistem neste concelho do Alto Minho. Cerca de 10 quilos estão a ser colocadas essencialmente na encosta ainda não desmatada e que está despida de árvores.

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

O tojo domina e ‘pica’ as pernas ao voluntários que procuram os melhores carreiros passar para progredir e um palmo de terra para deixar a esperança de um novo carvalho. A planta espinhosa dificulta muito a passagem dos voluntários e impossibilita também a entrada dos animais para que se alimentem.

Quantos aos carvalhos, “já foram embora há muito tempo”. 

“O cenário vem de décadas e séculos desta encosta aqui ter sido sempre pastoreada e onde as populações vinham buscar mato para os animais ou para a cama dos animais, para pôr nas cortes, para pôr nos locais de abrigo dos animais. Ao longo de séculos, isto fez com que as espécies arbóreas estejam praticamente inexistentes e dominem esta paisagem, estes matos densos, que são altamente pirófitos, ou seja, são altamente combustíveis. Isto para um risco de incêndio seria o pior e é essa a paisagem que temos atualmente”, nota o investigador.

As mudanças sociais e económicas levaram a um cenário de abandono da encosta junto à aldeia. Nos últimos anos, serviu também para deixar lixo. Após dez minutos de trabalho, já saía uma televisão do meio das silvas, para além do omnipresente plástico.

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Outros voluntários, com botas de borracha saltaram para as margens do charco para realizar alguns trabalhos de reforço de taludes com técnicas de engenharia natural. “Vai ser de casa para anfíbios e insetos, assim como proteger o talude”, explica a bióloga Joana Soto, do projeto Life Wild Wolf e dos Amigos da Montanha, a um dos voluntários que se junta aos trabalhos de juntar troncos, arbustos e ramos para proteger o ponto de água. 

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Joana Soto é a bióloga responsável do projeto BiodiverCidade, iniciado em 2017 pelos Amigos da Montanha, associação desportiva e ambiental sediada em Barcelinhos que mobilizou os voluntários. Apesar de estar sediada em Barcelos, a associação tem desenvolvido projetos com outros municípios, incluindo Paredes de Coura. 

“Vimos um corso aqui na estrada”

Apesar daquela zona ser ainda dominada por matos, a proximidade a pontos naturais importantes, como o carvalhal de Abedim, em Monção, faz com que a biodiversidade prospere. “Numa semana de monitorização apanhamos gato-bravo. Ontem, ao sairmos daqui, vimos um corso aqui na estrada”, conta Francisco Álvares a O MINHO. 

Do ponto onde se abrem buracos para colocar bolotas na encosta junto à Capela de Nossa Senhora dos Prazeres, a vista é panorâmica e permite ter perceção de que os eucaliptos e acácias dominam a paisagem, apesar de ainda resistirem manchas de carvalhais ou outras árvores autóctones. 

“Este tipo de floresta não dá nenhum alimento para essas presas naturais, o que faz com que o lobo não tenha as condições de refúgio, tranquilidade e alimento que necessita para poder estar estável”, sublinha. 

As presas naturais do lobo-ibérico, como o corso e o javali, necessitam dos bosques naturais, “aqueles que existiam aqui há séculos e milénios atrás, e que foram degradados a um nível de estarem reduzidos a manchas, às vezes, de menos de um hectare”. 

“É isso que queremos promover e quando tivermos uma floresta natural mais densa, teremos mais populações selvagens de presas naturais do lobo, e com isso poderemos pensar em ter uma política mais sustentável e de salvaguarda desta população de lobos que ainda temos em Portugal”, nota o investigador. 

Atualmente, esta degradação explica-se também com a “política de ordenamento territorial que temos tido”. “Queremos acessos, principalmente asfaltados, a todo o lado, queremos infraestruturas, queremos mudar para uma transição de energia mais verde… Muito bem, e isso está à custa das últimas serras mais agrestes e paisagens mais agrestes que temos, que é onde o lobo encontrou seu refúgio”, afirma. 

Em Portugal, o lobo está “principalmente acima dos 500, 800 metros de altitude”, que, no Alto Minho, são as pequenas serras. Como aqui, a Serra da Boalhosa, a Serra do Corno de Bico, onde os lobos têm o seu “refúgio”. 

Refúgios para o lobo “estão a desaparecer”

Francisco Álvares dá o exemplo da Europa que fica para lá da raia, onde a população de lobo cresce. Aqui ao lado, em Espanha, ou mesmo por França e por qualquer outro país da Europa, “facilmente vê-se extensas áreas de floresta natural, pode ser floresta até explorada, floresta com interesse económico, mas é floresta com espécies naturais”. 

“Essa floresta cria muito mais diversidade de alimento do que o nosso eucaliptal. A floresta de produção que nós continuamos a apostar em Portugal é uma floresta de produção baseada num eucalipto que não tem alimento para essas presas. E em qualquer outro país da Europa que formos passear, temos sempre zonas um pouco mais recônditas, onde essas espécies, como o lobo ou o urso, em Espanha, ainda há sítios remotos em que a fauna e os animais salvagens podem ter abrigo. Em Portugal, esses sítios estão a desaparecer”, alerta. 

A sul, no Alentejo, que “era a nossa zona natural”, está a ser tomada pela agricultura intensiva e centrais fotovoltaicas. “Tudo isso deixa pouco espaço para os animais selvagens, para os ciclos e processos ecológicos naturais que esses animais necessitam. E isso é a paisagem que temos em Portugal e que facilmente podemos vê-la em qualquer outro país da Europa. Isso não existe”, aponta. 

Menos espaço para as presas naturais do lobo, mais ele se aproxima das povoações e recorre aos animais ao gado para se alimentar. Aí surgem os conflitos com as populações, que continuam a ser um dos principais motivos para o lobo-ibérico estar em risco de extinção. 

Segundo o Censo Nacional do Lobo (2019-2021), publicado em dezembro de 2024, existem 13 alcateias confirmadas no Minho, nove delas acima do rio Lima, com a área de Monção e Melgaço a ser a mais habitada pelo Canis lupus

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Na área Noroeste, que inclui o distrito de Vila Real, são 24 alcateias no total. No país todo são 58, um número menor do que em 2003, altura do último Censo Nacional.

Fonte: Censo Nacional do Lobo

A estimativa do Censo Nacional, no caso da área da Peneda/Gerês, aponta para uma média de seis lobos por alcateia, resultando no número de 78 lobos nos distritos de Braga e de Viana do Castelo, número que poderá variar na realidade, uma vez que não é possível apurar ao certo o número de lobos em cada alcateia.

As alcateias, no distrito de Viana do Castelo, dividem-se por entre Viana do Castelo, Valença, Caminha, Ponte de Lima, Paredes de Coura, Monção, Melgaço, Arcos de Valdevez e Ponte da Barca. Já no território do distrito de Braga, encontramos alcateias em Terras de Bouro, Amares e Vila Verde.

Alcateias do Alto Minho reproduzem-se pouco

Na região intervencionada no sábado, pretende-se contribuir para a preservação da alcateia da Boulhosa, uma das “mais instáveis”. 

“É uma alcateia com um efetivo que ronda entre os dois ou três indivíduos e que tem uma taxa de reprodução reduzida. Esta alcateia reproduz-se só a cada cinco a dez anos, e isso muito por causa da degradação do habitat e principalmente da perseguição humana, ainda por retaliação aos prejuízos que o lobo provoca nos animais domésticos”, afirma. 

Contudo, a região do Alto Minho, a nível nacional, “não é a pior no sentido de que ainda há muito gado em regime de liberdade”. 

Isto é, há cavalos e vacas nas serras, o que representa “muito alimento para o lobo, mas também implica depois um grande conflito”. 

De acordo com o investigador, que estuda os lobos há mais de 30 anos, a maioria das alcateias no Alto Minho têm taxas de reprodução “muito reduzidas” precisamente porque se alimentam de animais domésticos. Depois as populações “matam muitos lobos e eles não conseguem ter a sua dinâmica normal de produzirem-se todos os anos, uma média de cinco crias”. 

“Isso em Portugal e aqui no Noroeste é raríssimo”, diz. 

Por isso, muitas vezes a mortalidade “é superior à produtividade”. “E como qualquer conta que é fácil de fazer, se morrem mais indivíduos do que aqueles que nascem, a população a médio e longo prazo pode ter problemas graves e até extinguir-se localmente”, alerta. 

A alcateia da Boulhosa pode ter um território de cerca de 200 quilómetros quadrados. Não é possível salvaguardar todo este território, principalmente nesta região em que a paisagem é “tão humanizada”.

“Temos que nos focar nos locais de reprodução. As alcateias são extremamente fiéis ao local de reprodução. Nós temos evidências, por inquéritos – dos velhotes que iam lá buscar as crias – de que os locais de reprodução têm sido continuamente sempre utilizados desde há mais de 80 anos, que é também a memória que conseguimos ir buscar”, conta. 

Posto isto, pode-se considerar que os lobos são “muito fiéis a estes locais” e há necessidade de os “salvaguardar”. “Nós temos que, num raio de dois quilómetros, condicionar as atividades humanas, no sentido de que só na altura da reprodução é que é mais preocupante, e por isso evitar trabalhos florestais, atividades com muita perturbação, e que então eles possam se reproduzir aí tranquilamente nesses locais, e então focar estes esforços de ordenamento do território, principalmente e de salvaguarda da perturbação, poder ser focado nos locais de reprodução”, nota. 

Estamos todos a rumar para o mesmo lado? Nem por isso. “A conservação da natureza em Portugal não está a ser uma prioridade dos governos nos últimos anos, e deveria ser, até porque a salvaguarda da biodiversidade e o restauro ecológico dos habitats dão-nos bem-estar, riqueza a nós humanos, por isso deveríamos pensar nisso. Acho que para passearmos todos gostamos mais de andar numa zona de carvalhal do que num eucaliptal ou num acacial”, atira. 

Depois, o investigador da Universidade do Porto lembra com preocupação a redução do estatuto de proteção do lobo na União Europeia, com a passagem de “estritamente protegido” para apenas “protegido”, aprovado, em dezembro, na Comissão Permanente da Convenção de Berna em Estrasburgo, na França. Esta proposta recebeu ‘luz verde’ para responder aos anseios de agricultores e caçadores europeus que se mostram preocupados com o aumento do crescimento do lobo nos seus territórios. Na prática, a nova legislação facilita a caça à espécie. 

Em Portugal, o cenário de crescimento não existe. É exatamente o oposto. A população decresceu 25% face ao último censo nacional e Francisco Álvares critica o voto favorável do Governo português à proposta apresentada pela presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen.

“Em termos do governo, também é necessário dizer que neste cenário do último senso nacional, com uma redução de 25%, termos a nossa Ministra do Ambiente a votar a favor da redução do estatuto de ameaça do lobo a nível europeu, torna-se preocupante. É um facto que na Europa o lobo está em expansão, sofreu uma expansão populacional extraordinária em muitos países europeus, exceto Portugal. É o único país europeu onde a tendência do lobo está a ser de regressão, e aí deveríamos ter políticas específicas para o nosso país, não irmos atrás do que a União Europeia nos aconselha e tentarmos aqui fazer um esforço um pouco como estamos aqui a fazer”, atira. 

Paredes de Coura é o único Município parceiro em Portugal

Para além do restauro ecológico, ações como aquela realizada em Paredes de Coura vai muito além dos benefícios para o local. 

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO
Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Tiago Pereira, vice-presidente da Câmara de Paredes de Coura, sublinha mesmo que, “no contexto do ambiente, não são muito relevantes”.

“Estas ações são importantes pela simbologia, para mostrarmos que estamos sintonizados com a causa. Só se tornam relevantes se forem replicadas por vocês todos os dias. O meu desafio que é [os voluntários presentes] possam replicar estas ações no dia a dia, nem que seja só falar com as outras pessoas”, disse o vereador com o pelouro do Ambiente.

Francisco Álvares destaca a presença dos 110 voluntários que se mobilizaram essencialmente desde Barcelos para ajudar nos trabalhos. “Nós temos aqui desde os 70 até aos cinco anos de idade, o que é extraordinário. Isso não implica só mão de obra, mas também sensibilização para esta temática do lobo”, aponta. 

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

O Município de Paredes de Coura é um dos três parceiros em Portugal do projeto Life Wild Wolf e, de acordo com o vereador, é “muito relevante porque visa estimular a biodiversidade”. 

E a biodiversidade é considerada valiosa nesta zona do Alto Minho. “O sítio onde estamos, nas Memórias Paroquiais, um registo muito antigo, o pároco de Vilarinho] relatava que esta zona era muito rica, porque tinha um ribeiro com muitas trutas, muita água e era uma zona de caça. Naquela altura a biodiversidade era muito valorizada, porque razão nós hoje nos sentimos muito mais inteligentes, não valorizamos? O projeto visa isso e afastar os animais que são selvagens das zonas onde eles não devem estar”, relata Tiago Pereira. 

O projeto Life Wild Wolf abrange a área de ocorrência de lobo nos distritos Viana do Castelo, Braga e ainda concelho de Montalegre. Abrange, por isso, três áreas protegidas – Arga, Corno de Bico, Peneda-Gerês e zonas envolventes.

Para além do restauro ecológico nestas zonas, o projeto colocar no terreno métodos de prevenção de ataques a rebanhos que sejam pastoreados perto de núcleos urbanos,

principalmente pequenos rebanhos de ovelhas. Dão cães de gado e cercas elétricas aos produtores. 

“Estamos a perceber e tentar mitigar a predação do lobo em cães domésticos, algo que não tem sido muito trabalhado e que é importante porque quando o lobo mata um cão doméstico, seja um cão de caça ou um cão pastor, é um choque emocional para os donos”, nota. 

Desenvolvem reuniões, principalmente em Paredes de Coura, onde querem “chamar todas as pessoas, todos os grupos de interesse, atividades turísticas, caçadores, empresas florestais, atividade pecuária”. 

A ideia é que “todos juntos” possam tentar “procurar soluções com o compromisso de que se identificarmos uma solução para uma maior convivência com o lobo, seja transversal aos interesses de todos esses grupos, podemos tentar implementá-la”. 

Foto: Pedro Gonçalo Costa / O MINHO

Uma das ambições em cima da mesa é a criação de uma “marca de território” denominada “Terras de Lobo”. “Essa marca pressupõe que todas as atividades económicas que sejam realizadas nesse território, sejam florestais, pecuárias, cinegéticas, tenham um selo de sustentabilidade para a conservação do lobo e possamos então criar essa consciência de que necessitamos fazer o nosso desenvolvimento em consonância com a biodiversidade”, explica ainda Francisco Álvares.  

O trabalho está feito por agora. É tempo de arrumar as enxadas e voltar à cidade. Ainda há muito mato para limpar e terra para cavar na serra. Mas, depois desta manhã, também ficam mais umas centenas de árvores a dar esperança ao futuro do maior predador das nossas montanhas. 

 
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