Barcelos: Há 30 anos que Manuel Melo dá a conhecer a “outra” música portuguesa

No Dia da Rádio, O MINHO fala com um dos maiores resistentes dos programas de autor
Foto: Pedro Luís Silva / O MINHO

Há praticamente 30 anos que Manuel Melo dá voz ao Sinfonias de Aço, um programa de música portugesa, mas “da outra” como o próprio gosta de dizer, ou seja alternativa, na Rádio Barcelos. No Dia Mundial da Rádio, O MINHO falou com um dos maiores resistentes dos programas de autor em Portugal.

Sete de novembro de 1992. O Sinfonias de Aço, como hoje o conhecemos, ou seja, um programa de música moderna portuguesa, foi para o ar pela primeira vez na Rádio Cávado. Se na altura Manuel Melo “não estava à espera que o programa durasse tanto, também não tinha um período de vida limitado para ele”. “Era para ir fazendo”, recorda o locutor de 57 anos.

O formato inicial do programa, anterior a 1992, foi inspirado no “Saturday Rock Show” do australiano Alan ‘Fluff’ Freeman (uma das maiores inspirações de Manuel Melo, ao lado de Tommy Vance, John Peel e António Sérgio – todos falecidos). “Passava rock de todo o tipo e quando falava era por cima de trilhas de música clássica. Eu plagiei e assumia isso. Só falava por cima de trechos de música clássica”, conta o radialista que começara nas rádios piratas com a Rádio Atlântida (o próprio assume que o nome era piroso).

Nome muito mais bem esgalhado é Sinfonias de Aço. Assim havia Manuel Melo baptizado essa tal primeira experiência inspirada em Alan Freeman. Por ser tão bom, foi ‘obrigado’ a mantê-lo em 1992, quando propôs “à direcção fazer um programa dedicado a todos os estilos de música portuguesa”. A proposta foi aceite, mas havia um problema. “Não tinha nome”. E a hora de ir para o ar estava a chegar. “Houve um colega lá na rádio que me disse: ‘Sinfonias de Aço é um nome do caraças, devias manter’. Abriu o microfone e disse: ‘Manuel Melo com o programa Sinfonias de Aço’. E ficou”.

Foto: Pedro Luís Silva / O MINHO

No início, o Sinfonias de Aço “era ajarvadado” e só quando o autor percebeu que o programa “tinha impacto” e granjeava “algum reconhecimento” é que começou “realmente a sério”. O “impacto” e o “reconhecimento” eram medidos pela quantidade de bandas de todo o país que enviavam o seu material para a rádio.

A nível local, o Sinfonias começou a criar um culto e assumiu um papel importante no primeiro ‘boom’ da cena barcelense, em meados dos anos 90. A Rádio Cávado passava a ser um ponto de encontro, ao sábado à tarde, onde se combinavam ensaios, se criavam bandas e se cultivava o gosto pela descoberta de nova música que ia sendo feita um pouco por todo o território nacional. Não raras vezes “o estúdio era invadido por mais de 20 pessoas”, conta Manuel Melo. “E bandas de vários quadrantes: os Oratory, os This Isn’t Luxury, os Fucklore e os Subúrbios (que partilhavam elementos). Era um fenómeno interessantíssimo. Só abria a porta uma vez, depois quem estivesse lá dentro ia abrir aos outros”, lembra.

Como naquele tempo a internet era para uns pouquíssimos privilegiados e as redes sociais não eram mais do que as criadas na ‘vida real’, a dificuldade para um grupo mostrar o seu trabalho era muito mais difícil. Até porque o material era mais caro e gravar era difícil e dispendioso porque havia poucos estúdios – e não havia blogues, as fanzines eram escritas à máquina. Como não havia muitas formas para as bandas de Barcelos mostrarem os seus trabalhos e o Melo “estava ali à mão de semear”, chegavam-lhe todos os discos, cassetes e até maquetes gravadas em ensaio. Tudo passava. Até “coisas medonhas, para dar uma força”.

Foto: Pedro Luís Silva / O MINHO

A rádio tornou-se fria

Depois de sete anos na Rádio Cávado (102.4 FM), o Sinfonias de Aço foi ‘para fora cá dentro’ e estabeleceu-se na ‘rival’ Rádio Barcelos (91.9 FM – à altura denominada Rádio Local de Barcelos). Durante nove anos abandonou o horário vespertino e passou nas madrugadas de sexta-feira para sábado, tendo regressado à luz do dia em 2009 – atualmente é transmitido aos sábados, entre as 12:00 e as 15:00.

Não sendo jornalista nem profissional da comunicação (a rádio é uma paixão em part-time), Manuel Melo teve um papel crucial na informatização das duas rádios locais do concelho onde nasceu e reside – e também onde trabalha na área da informática numa empresa têxtil.

O radialista, que faz o Sinfonias de Aço por carolice, única e exclusivamente, lamenta haver menos programas de autor e variedade de programação do que antigamente. “O conceito foi-se perdendo e por culpa de toda a gente. A malta mais nova não se envolveu muito na rádio, alguns deixaram de ouvir. Também por culpa de algumas direções e do pessoal que cristalizou nas rádios e foi envelhecendo, barrando as portas a um ou outro que ia aparecendo”, afirma, criticando, assim, o “fenómeno transversal” que pode ser observado tanto nas estações locais como nas nacionais e que levou à degradação da rádio, numa troca de papéis com a ‘caixa colorida’.

“A televisão vivia essencialmente do registo e do enlatado e a rádio do direto e da presença do locutor. Com as novas tecnologias, a rádio fugiu para a frente e passou a ser previsível, fria e impessoal. Puseram computadores a fazer rádio, a presença de uma voz que diz as horas, anuncia as músicas ou dá informações úteis desapareceu e a rádio afastou-se. Dantes, ficavas a ouvir a rádio minutos ou horas a fio para saber quem ganhou um jogo de futebol ou uma etapa do ’tour’; agora tens isso no telemóvel ou num computador e as pessoas já não ouvem a rádio por esse motivo. Ao pores computadores a passar música, a rádio transformou-se num imenso elevador. Eu continuo a subir pelas escadas”, ilustra.

Foto: Pedro Luís Silva / O MINHO

No entender de Manuel Melo, as rádios locais deviam “mostrar o que as nacionais não mostram”. Era esse o espírito que reinava nas rádios piratas e se manteve já depois de 1989 quando as ondas hertzianas passaram a ser reguladas. “Não estou a falar só de música. Havia o indivíduo que ia fazer uma hora por semana e havia programas sobre as mais variadas coisas: raças de cães, automobilismo, gastronomia, bordados”. E os programas sobre música eram mais eclécticos, porque havia sempre um fulano que gostava de punk, outro de jazz, outro de pop: “Era malta que divulgava a sua área de interesse”. Só que essas “pessoas foram desistindo” e “nunca foram substituídas”, pelo que a relação de proximidade foi-se perdendo. Até mesmo em termos informativos. “As rádios têm pouca gente, vivem muito da notícia que vem da agência”.

As novas tecnologias também vieram mudar muita coisa. Agora já não é preciso estar com o rádio ligado à espera que comece o tal programa que queremos ouvir. O ‘podcast’ é à vontade do freguês: pode ser ouvido em qualquer sítio, a qualquer hora. E o Sinfonias de Aço sempre teve em atenção o formato online. “Há pessoal que prefere o ‘podcast’ porque só tem o programa, não tem publicidade. Há quem prescinda das horas em directo ao sábado e prefiro ouvir depois à segunda de manhã no trabalho e ouve só a música”, aponta o radialista, acrescentando que, no entanto, subsiste “o tipo que está a lavar o carro e ouve”.

Foto: Pedro Luís Silva / O MINHO

O Sinfonias de Aço tem um site “interactivo e interligado com as redes sociais” que alberga as edições do programa, videoclipes e muito mais. Mas é o imediatismo da rádio que vai mantendo a mística. É que na internet procuramos essencialmente aquilo que já nos interessa, enquanto na rádio em directo há a hipótese de sermos surpreendidos. O público é aleatório: “Pode ser uma pessoa que nem sequer sabe que há bandas em Barcelos. E há muita gente que não faz a mínima ideia que existem bandas em Barcelos”.

Pop vs metal

Muitos ainda têm “a ideia de que o Melo faz um programa de metal”, o que não corresponde de todo à realidade. Nunca correspondeu, aliás. Desde o início que o Sinfonias recusou cingir-se a um só estilo e reservar-se ao direito de passar “desde Telectu a Ramp”. Isto numa altura em que havia vários “complexos” entre diferentes tribos que, entretanto, Manuel Melo acredita terem terminado. “Hoje podes ir com uma t-shirt de Slayer ver um concerto de hip-hop e ninguém olha para ti, não se passa nada”. Uma mudança positiva, portanto. “Acho que o ambiente é mais saudável e evoluímos bastante”.

Em 30 anos, o Sinfonias de Aço só esteve para terminar uma vez – e por razões exclusivamente técnicas. E o autor também não lhe vislumbra um fim nem lhe impõem um prazo de validade, apesar de sentir que “a missão está cumprida”. “Se o programa acabar, acho que não vai afetar minimamente a cena barcelense, era capaz de afectar há 10 ou 15 anos, agora não. Mas tenho medo que fique um vazio na minha vida”. E remata: “A minha vida orbita à volta disto”.

 
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