De Melgaço a Nova Iorque. Tiago Beites descobre novo travão para a tuberculose

Biólogo trabalha numa universidade americana e encontrou forma de matar a bactéria que provoca a doença

Por entre as descobertas nos campos e nas serras ao redor de Paderne, em Melgaço, na ‘alvorada’ da vida, o biólogo Tiago Beites, de 37 anos, não imaginava que décadas depois atravessaria diariamente os quarteirões de Manhattan, em Nova Iorque, à procura de descobrir o ‘calcanhar de aquiles’ de uma bactéria que provoca tuberculose.

Pela primeira vez nos últimos dez anos, o número de mortes por tuberculose aumentou a nível global, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), e a comunidade científica procura novas formas de ajudar a curar a doença. Esta segunda-feira foi um dia de monta para o português: todo o trabalho de seis anos avançou entre os pares, após publicação na conceituada revista científica Nature Communications.

Cientista doutorado em biologia, a trabalhar desde 2015 na Faculdade de Medicina da Universidade Weill Cornell, em Nova Iorque, descobriu, com a equipa de trabalho, um elemento numa proteína da bactéria patogênica Mycobacterium tuberculosis, agente causador da maioria dos casos de tuberculose, que pode ser um verdadeiro ‘tendão de aquiles’ para a doença. Cabe agora às farmacêuticas pegarem no estudo para que ‘nasça’ a terapia.

Se Nova Iorque é agora o local de trabalho e a Maia (onde sempre viveu em Portugal) o lugar a que chama casa, Melgaço é “a terra” que representa a liberdade na vida do cientista, licenciado e doutorado em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. E essa liberdade de explorar que aprendeu no Alto Minho fez sempre parte do percurso de curiosidade intrínseca a um cientista.

“Sem dúvida. Esse sentir-me um ser livre foi algo que levei para a vida. E também o contacto com a terra que me providenciaram, tanto da parte dos meus avós maternos como paternos. O saber de onde as coisas vêm e como funcionam. Ter um contacto direto com a terra é algo que guardo comigo”, revelou esta terça-feira após contacto telefónico com O MINHO.

Quando fala em liberdade refere-se aos fins de semana da infância passados em Paderne, mas também ao “mês inteiro” que o deslocava da Maia para a raia na altura do verão. Hoje, conta uma história clássica de cientista: “Tenho em mim a ânsia de conhecer e ficar perturbado perante o desconhecimento. E, de certa forma, Melgaço permitiu-me dar asas à imaginação e explorar, que era algo que fazia muito com o meu irmão. De certeza que teve a sua influência”.

Tiago e irmão na neve, em Lamas de Mouro. Foto: DR

E, entusiasmado com as recordações, prossegue: “A minha família é toda de lá, avós, pais, toda a gente nasceu em Melgaço. Entretanto vieram para o Porto e eu nasci no Porto (Maia). Melgaço para mim são os meus avós, é a terra. Na minha família, ninguém se refere a Melgaço como Melgaço, mas sim A Terra. Ou seja, eu já era emigrante dentro do país, porque não era dali, era de Melgaço (risos)”.

Hoje é um dos responsáveis pela luta contra uma doença que, embora já com cura, matou cerca de 1,5 milhões de pessoas em todo o mundo só no ano de 2020. Antes da covid, era a doença infeciosa que mais estava a matar, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde.

Com a chegada da adolescência, passou a frequentar mais o Porto, local onde estudava. Mas nunca se desviou do rumo da Ciência. Concluiu os estudos, fez doutoramento e decidiu arriscar “um desafio grande na vida” – uma candidatura que se provou bem sucedida. E em 2015 embarcou para Nova Iorque. Chegou a morar num dos locais principais de filmagem da película “Annie Hall”, de Woody Allen, e, diariamente, passa pelas ‘bandeiras’ de grandes filmes que via no cinema e na televisão.

Imagem do filme Annie Hall. Foto: DR

Sobre a adaptação, confessa que a mesma foi “muito boa”. “Já consegui duas boas publicações (em jornais científicos) e adaptei-me muito bem à cidade, que é fantástica. Não é difícil viver aqui”, afirma. Com o trabalho de seis anos quase concluído, quer agora candidatar-se para abrir um laboratório de investigação privado. Inicialmente ainda pensa nos Estados Unidos, mas também pode ser noutro país qualquer, até Portugal (embora ache quase impossível).

Descoberta que pode ajudar a salvar muitas vidas

Pedimos a Tiago que resumisse “de forma muito simples” em que consistiu a descoberta agora publicada, e o cientista teve a amabilidade de ‘trocar por míudos’: “Quando temos uma infeção bacteriana, tomamos antibióticos. E o que os antibióticos fazem é inibir componentes específicos necessários à vida da bactéria. Sem eles, ela morre. O que descobrimos foi um novo componente da bactéria (da tuberculose) que é necessária à sua vida para conseguir multiplicar e resistir ao sistema imunitário. É como se fosse o ‘tendão de Aquiles’ da bactéria. Agora, as pessoas da indústria farmacêutica podem pegar no conhecimento que nós geramos e tentar desenvolver um antibiótico que iniba esse componente especifico”.

Assim explicado parece fácil. Mas “é um trabalho de seis anos”, não só de Tiago, mas “de muita gente” com quem colaborou. Até lá, 90% do tempo foi de frustração, de “não funcionar, não entender”. “Mas são aqueles dez por cento que acendem a lâmpada e fazem as coisas andar rápido. E o problema na investigação é encontrar a tal lâmpada. É uma espécie de montanha russa que vai para baixo, para cima, e por vezes nem sabemos para onde estamos virados. Eventualmente, conseguimos fazer sentido da coisa”, conta, animado.

Mesmo a mais de 5.000 kms de casa, Tiago assinalou a vitória do seu clube no campeonato português. Foto: DR

Portugal pode ser um país para biólogos?

Portugal pode ser um país para biólogos? Tiago responde: “É difícil, sobretudo por uma questão de financiamento, já que é o Governo que decide o quanto é importante a Ciência para o pais. A opinião pública parece-me que não faz grande pressão para que haja investigação cientifica no país, e o trabalho do político é obter votos e se o político vê que não há grande pressão por uma atividade, no caso a Ciência, não se chateia muito com isso”.

No fundo, considera Tiago, “tudo se acaba por resumir a dinheiro”. “Mas há a salientar que mesmo com os poucos recursos em Portugal, o nível de ciência que se faz é elevadíssimo. Conseguimos fazer muito com muito pouco. Isso é algo a salientar”, destaca.

Portugal não está a perder talento, está a perder dinheiro 

Tiago concorda que existe no nosso país uma tendência para se dizer que estamos a perder os trabalhadores mais qualificados e talentosos, mas recorda que não é só isso que está em causa. “A grande perda é em termos económicos, porque a inovação científica é um motor da economia, e é preciso pensar a longo prazo”, considera.

“Se fizermos um grande esforço económico agora, é para termos resultados daqui a dez, 20 anos, mas também para ter uma economia mais sustentável”, avalia, defendendo que Portugal “não tem grandes recursos naturais”, e o melhor que tem “são mesmo as pessoas e o sistema de Educação público”.

“Os meus pais não eram pessoas de posse, mas nunca pensei que não podia estudar por não terem grandes posses. Acho que há um grande investimento na escola pública, e posso dar o meu exemplo: o Estado gastou milhares de euros com a minha educação e eu agora estou a levar isso tudo para fora”.

Tiago Beites. Foto: DR

“Não digo isto com mágoa, trabalhar aqui [Nova Iorque] é extraordinário, mas tenho de ser realista e, em Portugal, não há aposta na Ciência, e temos de lidar com as consequências disso. Não há qualquer mágoa, só acho que estão a comprometer o futuro do país”, termina.

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