Neste Artigo
- “A minha mãe tentou desencaminhar-me [do futebol] porque sabia que era uma vida muito dura”
- “A carreira tem que ser feita de decisões”
- “Arouca é uma terra que marca o nascimento do meu primeiro filho”
- “De uma época de sucesso para uma temporada horrível”
- “A questão financeira é muito importante na vida de um treinador”
- “Vitórias mais saborosas foram contra o Benfica”
Nascido em Barcelos numa família com ligações ao futebol, a mãe tentou “desencaminhá-lo” para o hóquei em patins. Mas o ‘bichinho’ do futebol acabaria por vencer e, aos nove anos, pediu como prenda de aniversário trocar o Óquei de Barcelos pelo Gil Vicente, onde acabaria por fazer praticamente toda a formação, primeiro a guarda-redes, depois como avançado. Só que nos últimos anos de formação aconteceu-lhe “das coisas mais estranhas da vida”, que foi “perder o prazer de jogar”. Não chegou a sénior, mas haveria de continuar ligado ao futebol, como treinador. Formou-se em Desporto, começou num pequeno clube de Braga, passou pelo Gil Vicente, Bragafut e Dragon Force até ter a primeira experiência com equipas profissionais na Líbia (onde foi campeão, após o campeonato ser interrompido), seguindo-se Irão e Emirados Árabes. Em Portugal, com Lito Vidigal, apura Arouca e Belenenses para as competições europeias. Depois, com Miguel Cardoso, faz uma época histórica no Rio Ave. Porém, na temporada seguinte, as passagens pelo Nantes e Celta de Vigo não são o esperado. A vida volta-lhe a sorrir como treinador principal nos sub-23 do Benfica até ser aliciado pelo Lille. Este ano, ao lado de Christophe Galtier e contra todas as expectativas, Jorge Maciel sagrou-se campeão francês. O MINHO esteve à conversa com o adjunto de 35 anos, natural de Barcelos, que não tem pressa de ser treinador principal, mas quando o for quer começar numa primeira liga. E não esconde que gostava de treinar o clube da sua terra natal, o Gil Vicente.
Como é que foi ser campeão francês contra todas as expectativas?
Ainda não temos bem noção daquilo que conseguimos. Estamos anestesiados pelo momento, mas foi uma sensação incrível. Foi o maior feito na minha carreira. Mesmo que um dia seja campeão noutro lugar, no contexto em que fomos – um ano de covid, com uma equipa que não era candidata – e conseguirmos ser campeões com um ponto à frente do Paris Saint Germain (PSG), que é uma equipa que não é construída para ganhar o campeonato francês, mas para competir pela ‘Champions’, é um feito incrível. E é um exemplo de quando toda a gente está junta e tem um propósito comum consegue superar as limitações financeiras que, em comparação com o PSG, são completamente diferentes. Foi fantástico.
Quando deixaste os sub-23 do Benfica para ires para o Lille disseste que foi a decisão mais difícil da tua carreira, mas agora sabes que valeu a pena, foi a melhor decisão que podias ter tomado?
A lógica da nossa profissão é um bocado essa. Os treinadores andam sempre a ter que tomar decisões, seja decidir quem é que vai jogar, seja decisões mais profundas como as de carreira. Foi um tiro no escuro. O projeto seduziu-me porque tinha consistência e tinha a expectativa de que era uma experiência que me poderia ajudar a ser melhor e crescer profissionalmente. Jamais equacionaria, mesmo tendo o Lille na época anterior ficado em segundo no campeonato e ido à ‘Champions’ (fiz inclusive um jogo de ‘Champions’ contra o Chelsea), acho que ninguém esperava ser campeão. Hoje, não deixando de ter sido uma decisão difícil e não deixando eu de ter um vínculo grande com o que fui a minha experiência com o Benfica, que foi fantástica e permitiu-me ser mais capaz no Lille, é o sentimento de que deu certo, foi a aposta certa. Isso dá-me um certo conforto.
Foste campeão e logo a seguir a festejar vieste para Portugal continuar a trabalhar, não é?
Estou a frequentar o quarto nível UEFA Pro, na Federação [Portuguesa de Futebol, em Lisboa]. Ao longo da época, todas as paragens FIFA foram preenchidas também com aulas, é um curso que tem vindo a ser realizado ao longo da época e culmina agora. Temos que nos habilitar e recolher competências. Não só a formação em si, pois um aspeto que eu valorizo muito é a partilha com os outros, neste caso com colegas treinadores, principais e adjuntos, mas também com os formadores. Este lado da formação mais informal, quando as pessoas falam dos seus problemas, conversam sobre as suas realidades, acho que nos ajuda muito. Cresci muito. A minha formação é académica, não fui um jogador de alto nível. Fiz a formação como jogador no Gil Vicente e um ano no Andorinhas [clube de Arcozelo, freguesia urbana do concelho de Barcelos], depois fui para a faculdade. Nunca fui jogador profissional, mas sempre tive muita sensibilidade e muita vontade em ouvir os jogadores, porque eles têm muito para nos dizer. Este lado empírico, juntamente com a sustentação mais científica, faz um casamento feliz.
“A minha mãe tentou desencaminhar-me [do futebol] porque sabia que era uma vida muito dura”
Quando é que começas a jogar futebol?
Sou de uma família de Barcelos em que o meu tio tinha sido jogador do Gil Vicente. Era o meu tio Zé Manel, irmão da minha mãe, e tinha sido guarda-redes. Portanto, desde pequenino o futebol estava muito presente. Mas também por isso, por ter na família pessoas que tinham estado ligadas ao futebol, a minha mãe tentou desencaminhar-me porque sabia que era uma vida muito dura. O que ela queria para o filho não era o que tinha visto o irmão viver, que era andar sempre com a casa às costas, um ano aqui outro acolá, sofrer com os resultados desportivos. E aos quatro/cinco anos para atenuar-me este bichinho pelo futebol decidiu meter-me nas escolas de patinagem do Óquei Clube de Barcelos. Portanto, a minha iniciação no desporto é feita na patinagem. Até que depois, aos nove anos, na altura em que da patinagem passávamos para a dimensão mais coletiva, para o hóquei, lembro-me perfeitamente de, na altura, comprarmos o equipamento todo na loja Oito Rodas, que era do Pedro Alves, glória do Óquei de Barcelos. O equipamento de hóquei é bastante caro: patins, caneleiras, stick, bola, joelheiras, luvas, etc. Isto foi em agosto/setembro, início de época, e eu faço anos a 30 de outubro. Quando faço os nove anos, a minha mãe perguntou-me o que eu queria de prenda. E um mês depois de termos comprado todo aquele material, disse-lhe que a prenda que queria era deixar o Óquei e ir para o Gil. É aí que começa a minha aventura no Gil Vicente e no futebol. Na altura tinha jeito e gostava de ser guarda-redes. Comecei na baliza. Nos iniciados passei para avançado. Num jogo experimentei ir à frente, marquei dois golos e então comecei a ser avançado. E fiquei na formação do Gil Vicente até aos 16/17 anos. Quando vou para a faculdade, no meu último ano de júnior, sou emprestado ao Andorinhas, treinava praticamente uma vez por semana. Mas aí também percebi que o meu futuro não era ser jogador de futebol. Então dediquei-me a outra forma de estar no futebol, estudar para ser treinador.
Como é que tiveste essa perceção? Porque é que não deste o salto para jogador profissional?
Tive um período, nos iniciados sub-15, em que fui o melhor marcador da equipa, fizemos um campeonato nacional muito interessante; no primeiro ano de passagem para juvenil joguei pela equipa principal; e no segundo ano, surgiu-me uma coisa que foi das coisas que mais custaram enquanto jovem que foi perder o prazer de jogar. Tive um treinador que eu sentia que não me valorizava, não dava aos jovens a formação de que eles precisavam, não os acompanhava como eles precisavam e desmotivei. Achei que era injusto em algumas decisões que ele tomava, que tinha atitudes que não eram para alguém que estava a lidar com jovens que se estavam a formar como homens, e perdi completamente a motivação. Ia aos treinos porque não queria dizer que ele tinha razão para eu não jogar e perdi a paixão de jogar. Foi das coisas mais estranhas que senti na minha vida. Depois continuei, passei aos juniores, fui emprestado ao Andorinhas e, a partir daí, deixei de jogar. Quando não há paixão, não interessa. Os meus pais também foram importantes, porque nunca me alimentaram muito a expectativa. É normal – agora eu vejo – os miúdos quando aos 15 anos marcam 20 golos num campeonato de iniciados é porque têm algo de especial, para mais numa equipa como o Gil Vicente que, na altura, não era uma equipa com o potencial de outras. Mas os meus pais sempre foram tranquilos, nunca me pressionaram para ser jogador. Acho que a minha mãe nunca viu um jogo meu, o meu pai às vezes ia às escondidas ver. Este lado deu-me algum equilíbrio para perceber o que era importante e se tinha pernas para andar a carreira como jogador. E não tinha.
E depois vais fazer a formação académica na área [Licenciatura em Desporto e Educação Física pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto]. Quando vais para a faculdade já tinhas em perspetiva a carreira de treinador?
Quando vou para a faculdade, vou com um referência muito grande: Carlos Ramião, que era meu professor de educação física e foi o primeiro treinador nos infantis e iniciados do Gil Vicente. Aliás, o meu primeiro treinador foi o Marconi, mas o primeiro a competir foi o professor Ramião. E eu via nele um exemplo, um modelo. Na altura queria ser professor de educação física e treinar os miúdos. Era esse o meu horizonte. E quando vou para a faculdade vou para ser professor de Educação Física. Depois, no segundo ano da faculdade, tinha de escolher uma área, optei pela especialização em futebol, e aí começo a descobrir o interesse pelo treino, fundamentalmente por ter conhecido a minha maior referência a nível de treino, o professor Vítor Frade.
“A carreira tem que ser feita de decisões”
E depois o teu percurso como técnico volta a começar no Gil Vicente?
O meu percurso como treinador começa numa equipa mais pequenina. Nas férias, para ganhar uns trocos, trabalhava nas piscinas municipais de Barcelos como vigilante, na altura com 19 anos. E tinha lá um professor de Educação Física, o Sérgio Lino, que dava aulas nas piscinas. Ele via-me sempre com livros de futebol e percebeu que tinha ali um interesse especial. Ele era responsável por um clube que era o CATEL em Cunha, Braga. E disse-me: “Tenho um clube que é uma coisa pequenina, está a crescer e se quiseres podes ser treinador dos juvenis”. E assim foi. É a minha primeira experiência. Na altura estou a viver no Porto e, do primeiro para o segundo ano [da faculdade], pedi aos meus pais para deixar de viver lá e com o dinheiro que pagavam para a casa que me dessem um carro. E assim foi: ia e vinha todos os dias, treinava duas ou três vezes na zona de Braga, ao fim de semana fazíamos um jogo e foi assim que começou. No ano a seguir, aí sim, na metodologia de futebol, tínhamos que fazer uma espécie de estágio, em que tínhamos que documentar o que era o dia a dia num clube, e surge a oportunidade de, no ano do ‘caso Mateus’, ir para as escolinhas do Gil Vicente. Vou inicialmente para colaborar, mas em função de rebentar o ‘caso Mateus’, o treinador que ficaria responsável pelas escolinhas acabou por perceber que ia dar para o torto, não ia haver dinheiro, e os diretores viraram-se para mim e para o Miguel Lalai, que também estava comigo a ajudar o treinador, e disse: “Isto agora vai ser para vocês”. E foi. Fizemos um ano muito giro. Depois, seguiu-se o ano da monografia e o ano de estágio, em que fui para a Bragafut. Aí acabei, defendi a minha tese, acabei a monografia, acabei o ano de estágio e licenciei-me. No ano a seguir vou para a Dragon Force. Na altura era o ano zero da Dragon Force no Porto. Estive aí dois anos e foi a minha última experiência sem ser com profissionais.
E logo a seguir vais para a Líbia.
É a minha primeira experiência [com equipas profissionais]. Na altura com o Baltemar Brito vamos para a Líbia [Tripoli] em novembro. Ficámos aí pouco mais de três, quatro meses até que rebenta a Primavera Árabe. Vivi uma situação que, aos 25 anos, é inédita: saíres do teu país, passares por uma cultura completamente diferente, perceberes que o mundo é muito maior que a tua casa. Há diferentes culturas, formas de estar, comidas, cheiros, há todo um conjunto de coisas que desconhecemos e nos tornam muito mais flexíveis e mais tolerantes à diferença.
Como é que um jovem treinador a iniciar a carreira encara uma proposta dessas de ir para um sítio tão longínquo e tão diferente?
Isso foi giro, porque inicialmente não era para ir para a Líbia. Íamos começar a época no Belenenses, na altura com uma comissão administrativa. O Baltemar Brito foi apresentado como treinador do Belenenses, mas, devido ao facto de haver mudança de direção, acaba por ficar sem efeito. Portanto, fiquei ali de julho até novembro à espera que aparecesse alguma coisa. E aí os meus pais foram muito importantes porque tinha comprado casa no Porto, estava a pagá-la, tinha deixado o FC Porto. E, embora pudesse ter voltado ao FC Porto por a hipótese Belenenses não ter acontecido, queria experimentar uma realidade profissional. Havia ali a oportunidade e falei com os meus pais, expliquei-lhes que queria esperar para poder passar para o futebol profissional. Eles disseram: “Não te preocupes”. Felizmente tiveram a disponibilidade financeira. Quando colocavas há pouco a questão se foi uma escolha acertada sair do Benfica, como vês nesta carreira há muitas escolhas do género, pequenos momentos que são importantes. Aos 25 anos, queria experiências, não tinha família como tenho agora. Não tinha pessoas que dependiam de mim, eu é que dependia mais dos outros até. Foi extraordinário, espírito de aventura. E eu digo muitas vezes às pessoas que me perguntam como é que se faz, o que é que eu fiz, que não há um segredo. Eu tenho alguns princípios na minha carreira que são: nunca te questiones se estás preparado, porque até passares pelas coisas não sabes. Vai-te preparando e quando as oportunidades aparecerem assume. O rio está sempre lá no mesmo sítio, mas a mesma água só passa lá uma vez. E às vezes esta decisão num mundo de risco, em que não controlas muita coisa, em que a nossa carreira é muito volátil, tens que ter coragem. Nessa altura foi essa lógica: o rio está lá, mas a mesma água só passa uma vez. Em relação ao Benfica aplico outra metáfora um bocado diferente que é: por muito dourada que seja a gaiola temos que ter a lucidez de perceber que estamos lá dentro presos. Eu estava bem no Benfica, mas se podia ir para o outro lado, vamos aproveitar. A carreira tem que ser feita de decisões. Nunca planeei a minha carreira no sentido de querer estar com este ou aquele treinador, mas de chegar a determinado patamar, e fui mergulhando nas oportunidades que foram surgindo.
“Arouca é uma terra que marca o nascimento do meu primeiro filho”
Estavas a falar da experiência na Líbia com a Primavera Árabe, tiveste alguma situação de maior aflição?
Aflição, não. Senti algum receio porque não falas a língua, não sabes o que está a passar na televisão, mas sabes que está a haver problemas. Fomos expatriados. A Força Aérea Portuguesa foi a primeira força internacional a entrar no território líbio para expatriar pessoas. Fui expatriado num [avião] Hércules da Força Aérea, fizemos Tripoli – Catânia / Catânia – Figo Maduro. Os meus pais a quererem falar comigo e o telefone cortava porque nem sempre há conexão, porque o Estado cortava as ligações internacionais. Tens as dúvidas de estar ligado à televisão e veres sempre as mesmas imagens repetidamente de bombardeamentos e manifestações. Das poucas vezes que consigo conectar com Portugal, as pessoas desesperadas a dizerem que Tripoli está a ferro e fogo, a ser bombardeado. E ter que passar segurança para o lado contrário, dizer: calma estou aqui e não estou a ouvir nada, não se passa nada. Foi difícil transmitir serenidade para as pessoas que estavam inseguras porque não estavam lá connosco. Quando recebemos a notificação da embaixada que tínhamos de nos apresentar no aeroporto, lembro-me de à noite perdermos o primeiro helicóptero pelo que íamos no segundo no dia seguinte, e os meus pais dizerem-me: tem cuidado, porque dizem que a estrada para o aeroporto está cheia de mortos. Apanhámos o táxi de manhã, fomos em direção ao aeroporto e aí tenho uma imagem que me vai marcar para toda a vida, que é chegar ao aeroporto e ter centenas ou milhares de pessoas – estamos a falar de emigrantes do Chade, Níger, europeus , brasileiros… – a trazer tudo o que podiam e a tentar arranjar voos. E quando chegas de manhã colocas algumas dúvidas: será que viemos ao engano? Até que depois começas a ver mais um e outro português, pronto, não estamos sozinhos, vai-se passar alguma coisa. A questão mais problemática foi a questão dos meus pais, porque desde a manhã deste dia até ao momento em que entro na pista de aterragem, não lhes consegui ligar. Os meus pais ficaram um dia com a imagem de que a estrada estava cheia de mortos, sem terem notícias minhas. Até que quando vou a entrar para embarcar consigo ligar à minha mãe, que está desesperada, a chorar, e digo-lhe que vou entrar no helicóptero. A minha mãe estava aterrorizada, mas eu nunca senti [medo]. E, pelo contrário, desconstruo muito o estigma que existe em relação aos países árabes e aos persas no caso do Irão. O Irão é um país fantástico, para o qual quero ir de férias. Acho que tem uma cultura brutal, cidades lindíssimas. A Líbia não tenho dúvidas que, se não acontecesse o que aconteceu, porque efetivamente tem muitos interesses por trás e é riquíssima, seria um país com potencial tão grande ou maior que países como Emirados Árabes Unidos. Povo afável, país incrível. Do ponto de vista cultural, o que menos me marcou foram os Emirados porque é diferente, não têm uma cultura própria, ou melhor, têm mas não a notas, porque é um país maioritariamente estrangeiro, digamos assim. É uma dinâmica importada, de nacionalidades que trabalham lá para dinamizar o país. Tenho o maior apreço pelos países árabes, pelas pessoas, pela cultura.
Ainda foste campeão na Líbia.
Sim, fomos declarados campeões porque o campeonato acabou a meio. Tenho dois títulos, mas o único que festejei foi o último. Estávamos a sete pontos do segundo, mas o campeonato terminou a meio, daí termos sido declarados campeões, porque íamos à 15.ª jornada e íamos em primeiro. Aliás, habilitou a equipa a jogar a Liga dos Campeões passados dois anos.
Depois, voltas a Portugal com o Lito Vidigal, vais para o Belenenses e depois Arouca e, em ambos, conseguem a qualificação para as competições europeias. São marcos importantes na tua carreira.
Sim, sobretudo tendo em conta os contextos daquelas equipas. Não conhecia o Lito Vidigal. Estava na Líbia quando rebentou a guerra mas voltei passados dois anos [com o Baltemar Brito] para substituir [a equipa técnica do] Lito Vidigal, que tinha estado a fazer o tal apuramento na Liga dos Campeões. Depois é que surgiu essa possibilidade de trabalhar com o Lito, que eu não conhecia. Estava a jogar o Benfica-Everton para a Liga Europa e o telefone toca e dizem-me: “Vem para baixo [Lisboa] que o Lito já está a treinar, amanhã tens que treinar com ele”. Peguei no carro, fui para baixo, fomos jantar e no dia a seguir estávamos a treinar. O Belenenses estava em penúltimo lugar. Estávamos na luta com o Olhanense e o Paços de Ferreira. Tínhamos menos cinco pontos que o Paços de Ferreira e conseguimos ficar cinco pontos à frente. Para mim, esse e o do Lille foram dos feitos mais difíceis. Chegámos com uma desvantagem enorme e conseguimos evitar a Liguilha. No ano seguinte, saímos por divergências com a administração quando estávamos em sexto lugar, e o Belenenses acaba nessa posição e a fazer a Liga Europa com o Jorge Simão. Vamos para a Arouca. E Arouca é uma história gira, um bocado à semelhança do Lille, embora eu ache que, pelo nível do plantel, em comparação com os adversários, era mais exequível ir à Europa com o Arouca do que ser campeão com o Lille. Fazemos uma Liga Europa no Arouca. O Francisco [filho] não nasce em Arouca, nasce em Viana do Castelo, mas o primeiro jogo a que ele assistiu, com 15 dias, foi o último jogo do campeonato com o Vitória SC. É uma terra que marca o meu primeiro filho, uma terra que marca um feito muito giro. É uma vila muito bonita, muito particular, muito afável, amistosa, com boa comida, com muitas coisas que as pessoas desconhecem, porque o pior de Arouca é lá chegar. A estrada não ajuda, mas quem lá vive sente que é especial, sentes-te em casa, sentes que as pessoas te acolhem.
A seguir ao Arouca, vais para o Rio Ave com o Miguel Cardoso.
Sim, o Lito Vidigal sai para o Maccabi Tel Aviv, convida-me para ir com ele. Inicialmente, era para ir, mas depois acabei por não ir e surge a oportunidade de trabalhar com o Miguel Cardoso. Para mim, foi das equipas dos últimos anos que maior qualidade de jogo apresentou com recursos normais. Fizemos uma época muito boa, não só em termos de resultados – foi uma época histórica, com o maior número de pontos e vitórias – mas sobretudo porque marcámos um estilo completamente diferente para uma equipa daquela dimensão. Foi um trabalho que nos realizou muito.
“De uma época de sucesso para uma temporada horrível”
Entristece-te a situação atual do Rio Ave [a entrevista foi feita ainda antes do play-off que determinou a descida de divisão]?
Primeiro que tudo, custa-me. Há pessoas ali com quem, durante aquele ano, vivi mais tempo do que se calhar com a família e estão a sofrer horrores. Mas a seguir ao Rio Ave, eu passei por uma coisa parecida com o que o clube está a passar agora, que é depois de uma época de sucesso teres uma temporada horrível: chegares a Nantes, seres despedido, vais para o Celta de Vigo e és despedido. De um ano de glória passas a um ano de frustração e desilusão, e o mais importante é as pessoas perceberem que o futebol é, como dizem, das coisas mais importantes dentre as menos importantes. O mais importante é perceberes que o futebol dá muitas voltas e não é por trabalhares mais, por te aplicares mais, seres mais ou menos competente. As coisas são assim, é um jogo. Nós que andámos no futebol escolhemos uma profissão que não controlámos totalmente. Há coisa que controlamos – como queremos jogar, como queremos treinar – mas depois há todo um conjunto de coisas que, por ser um jogo, não controlamos. Ou nos convencemos que isto é efetivamente um jogo e umas vezes vamos ganhar e outras vamos perder, e há momentos em que vais perder mais do que ganhar, ou então vais andar completamente desesperado. Deu-me muita maturidade essa época, porque perdi mas tinha estabilidade em torno de mim, da minha família: da Nídia [Correia Maciel, esposa], do Francisco, dos meus pais, dos meus sogros. Permitiu-me perceber que, ganhando ou perdendo, há coisas que eu nunca perco que são as pessoas e o orgulho que elas têm em mim. Lembro-me perfeitamente que um dos abraços mais bonitos que o Francisco me deu foi nos quartos de final da Taça, do Rio Ave com o Aves, que é um jogo que me marca porque, se ganhássemos, íamos jogar com o Caldas a duas mãos e provavelmente íamos à final da Taça. Naquele dia, o Francisco dá-me um abraço tão especial, na derrota, como foi o abraço que ele me deu a seguir a ser campeão pelo Lille. Isto é um jogo. O mais importante é termos a estabilidade suficiente para perceber que o orgulho que as pessoas têm em nós existe quando nos aplicamos a fundo. E depois sabemos que uma vezes vamos ganhar e outras vamos perder. Portanto, o futebol é muito assim. O Rio Ave está a passar um momento mau, mas os adeptos, as pessoas que gostam do Rio Ave vão estar desiludidas, mas vão continuar-se a orgulhar. É a maior lição que tiro do futebol: é que a tua tranquilidade ajuda-te a ter muitos resultados. Perceber isto deu-me tranquilidade. Fui para o Benfica no pior período da minha vida profissional. Tinha sido despedido, estava desempregado.
Foi como uma recompensação pelas agruras que passaste no Nantes e no Celta?
Sim. Há momentos em que te revoltas com as coisas, com as pessoas. Na nossa vida vivemos com muita pressão todos os dias, é a instabilidade do emprego, é a instabilidade do resultado. A nossa vida tem esta instabilidade permanente e muitas vezes não damos valor às pessoas que estão lá connosco. Estava muito desiludido com o futebol, estava frustrado porque sentia que tinha dado tudo e estava numa situação injusta para mim. É um momento em que penso que ia ficar esse ano sem treinar e, de repente, aparece-me o Benfica. E dá-me uma lição de maturidade, de que isto dá tanta volta, tanta volta e parece que há uma lógica subjacente, pode ser até esotérico, que não percebes, que não faz sentido nenhum, mas de repente põe tudo no sítio. Se calhar, estar desempregado [naquela ocasião] foi o que me permitiu ir para o Lille. Porque fui para o Benfica com uma maturidade diferente e fui feliz. Porque percebi que não era por trabalhar muito ou pouco, mais ou menos do que fazia, mas acima de tudo tinha que estar era apaixonado pelo que fazia. Ao contrário da maior parte das pessoas, eu faço aquilo de que gosto e até sou bem pago e tenho a possibilidade de ajudar os outros a serem melhores no treino, a crescerem como jogadores. E esse foi o espírito com que fui para o Benfica, sou um felizardo porque faço o que gosto. Quem está apaixonado e entusiasmado, acaba por ter sucesso. E com a consciência de que ganhar e perder faz parte.
Como é que é treinar no Benfica? Sendo dos maiores clubes em Portugal, proporcionou-te melhores condições do que as que até então tinhas tido?
Sim, eu estava nos sub-23 mas no nosso staff éramos oito ou nove pessoas, maior até do que no Lille. Tens todas as condições. Depois tens os melhores jogadores. Em termos formativos, se calhar tem os melhores jogadores de Portugal, a matéria-prima é boa. A realidade de sub-23 é que é um plantel de transição: há jogadores dos sub-19 que às vezes subiam aos sub-23, sub-23 que iam para os sub-19 e equipa B, ou da equipa B que vinham para os sub-23. Ou seja, havia ali uma base comum que era importante manter coesa, sólida e com um propósito claro que fosse capaz de aceitar quem vinha de baixo e quem vinha de cima com o mesmo espírito. Era esse o desafio. Até por causa dessa lógica, sentia-me mais como um selecionador, porque muitas vezes tinha jogadores que treinavam um ou duas vezes e iam jogar. Mas também pelo facto de ter uma densidade competitiva muito grande e nunca tínhamos semanas normais. Ou havia seleções e perdíamos 10, 15 jogadores e juntávamos com as outras equipas, ou então tínhamos Youth League, na semana de ‘Champions’. Há um jogo que recordo, em Lyon, que foi sensacional e aí percebes a dimensão do Benfica. Sentias os emigrantes nas bancadas a apoiarem. Jogas em Lyon e estás a jogar em casa, sentes o público a vibrar. O Benfica são as pessoas, os clubes são as pessoas, a massa adepta. Não tenho dúvidas de que grande responsabilidade dos campeonatos que o Benfica ganhou nos últimos também se deve aos adeptos. Aquilo assusta e leva [a equipa] para a frente e inibe quem está do lado contrário. Não é por acaso que esta questão da covid, devido aos estádios vazios, também prejudicou alguns clubes e penso que o Benfica foi um dos casos.
Quando trocaste o Benfica pelo Lille estavas a liderar o grupo da Youth League.
Saio com o apuramento garantido, após o jogo com o Leipzig em que ganhámos 3-0. Essa é uma competição muito boa. Embora no Benfica a maior parte dos jogadores já pudesse competir com os melhores das suas gerações por causa das seleções, é uma experiência muito boa para eles. Ali competes com os melhores jogadores dos próximos anos. Era uma altura em que o Benfica não estava muito bem na ‘Champions’ e viajávamos no mesmo avião, íamos cá atrás e os seniores à frente, e em contraste a nossa Youth League foi muito boa. No avião ia também a comitiva mais ilustre, convidados do Benfica, e quando regressávamos dizia-lhes a brincar: hoje quem vai à frente são os miúdos. Essa comitiva ia ver os jogos e é importante esta questão de os miúdos sentirem que já olham para eles. Recordo-me de o Barbas e o Máximo, sócios bem conhecidos, no final do jogo com o Lyon me dizerem: “Míster, obrigado, porque já andamos com o Benfica há muito tempo e nunca vimos um festejo assim dos jogadores. Esse jogo teve momentos muito bonitos: a celebração do terceiro golo e no final. Os jogadores foram para a bancada abraçaram os adeptos, foi uma experiência muito importante para os miúdos perceberem o que é o Benfica, perceberem a dimensão do clube.
“A questão financeira é muito importante na vida de um treinador”
O que te convence a deixares de ser treinador principal e voltares a ser adjunto no Lille? O que te seduziu na proposta?
Seduziu-me primeiro a abordagem do Luís Campos, que foi determinante. Seduziu-me o desafio que eu sabia que não era fácil: chegar a uma equipa que já está formada, que tem dinâmicas próprias, que está em plena competição. Seduziu-me a forma como efetivamente eles fizeram questão de me fazer perceber: “És tu o gajo que queremos”. Percebi também que tinha deixado uma boa imagem num clube muito importante como o Benfica. Mesmo que a missão não tivesse chegado ao fim, tinha a consciência de ter feito o melhor possível para que chegasse de melhor forma. Acho que muitas vezes não percebemos o timing de sair. Mais vale sair por cima do que por baixo. Depois, a questão de ir para uma equipa que luta por coisas interessantes no top 5 dos campeonatos europeus. É outra realidade. É treinares todos os dias com jogadores que são internacionais, que têm vivências, que te colocam outro tipo de problemas. Uma coisa é estarmos no Benfica na formação e dizermos que fomos treinadores do Renato Sanches, por exemplo, outra coisa é treinar o Renato Sanches aos 23, 24 anos. É a mesma pessoa, mas já passou por muitas mais coisas. Lidares com internacionais, teres problemas de competição contra equipas que são mais fortes que tu, foi altamente aliciante. E claramente uma questão financeira também. A questão financeira é muito importante na vida de um treinador. Porque quanto mais autonomia financeira tiveres, mais podes escolher o que tu queres, mais podes ser autónomo no exercício das tuas funções. Não dependes de opiniões, de sugestões, tens autonomia intelectual. Aos 35 anos, temos uma família bonita, com um estilo de vida que pouca gente tem. E a Nídia e o Francisco sacrificam-se por mim e têm que ter algum retorno, na qualidade de vida, naquilo que lhes é proporcionado. (…) Isto é um detalhe que faz toda a diferença. Íamos viajar de Leipzig diretos para Lille, mas havia um problema com a viagem. Mandaram-nos um avião privado para nos buscar aos três. São detalhes que mostram que eles me queriam mesmo e tinha que responder da melhor forma. Tenho que agradecer imenso ao Benfica e a forma como tentou que ficasse. Mas fomos [para Lille] e neste momento com o conforto de que ainda bem que viemos.
E o futuro?
Tenho mais um ano de contrato. No futebol nunca podes fazer planos a longo prazo. Agora estou a terminar o IV nível, estou a habilitar-me para ser treinador principal, mas acho que ainda não é o momento. Prefiro ser adjunto numa realidade boa do que entrar num projeto como principal em que diga “vamos ver o que isto vai dar”. Não tenho urgência em ser treinador principal. As coisas acontecem quando têm que acontecer. Como aconteceu com o Benfica, sem estar a contar. O importante é continuar apaixonado e numa boa realidade.
Em termos de carreira qual é o teu objetivo?
Para já, é continuar neste patamar, numa das principais ligas europeias, jogar com clubes ambiciosos, que lutam para estar nas competições europeias. Gostava de experimentar outros campeonatos, como adjunto ou principal no futuro, como Inglaterra, Itália, Espanha (onde já estive, mas pouco tempo).
Não tens a cadeira de sonho?
Não tenho, porque no futebol podes ser feliz em qualquer lado. Parte muito mais da predisposição que tens para ser feliz e de aproveitares as oportunidades que tens do que propriamente é ali que eu quero estar, é com aquele treinador que quero estar. Estou aqui, estou feliz, gostava de vir a ser treinador principal. Dentro de mais dois ou três anos, não me importava nada. Mas se tiver que entrar em Portugal quero entrar na I Liga, não quero entrar na II Liga e acho que o meu percurso deve ser feito nesse sentido: ter vivências, ter estatuto, ter currículo que me habilite para tal. Gostava de treinar em Portugal. Às vezes, em casa, digo que gostava de um dia treinar o Gil Vicente, porque é o clube onde me formei como jogador. Mas se não for, tranquilo. Podemos ser felizes no Irão, na Líbia, nos Emirados, em Espanha, em França, em Barcelos, no Algarve. Depende muito mais do partido que tiramos de cada experiência do que propriamente de vivermos na ansiedade de que tem que ser ali. A minha carreira é tudo menos planeada em termos de clube ou de treinador, mas mais planeada em patamar. Como adjunto, quero continuar neste patamar, como principal quando assumir gostava de assumir uma primeira liga.
Tens clube de coração?
Tenho, as pessoas sabem que sou benfiquista, não tenho nada a esconder. E acho que isso também era notório quando estava no Benfica. A Nídia às vezes dizia: “Acho que as coisas funcionaram porque estavas mesmo naquilo”. Acho que vesti bem a camisola. Não temos que viver com problemas em relação a isso. Somos profissionais, já fui feliz em muitos lados e triste em muitos outros. Se o Porto, Sporting, Braga, Boavista ou Tondela me convidarem, espetáculo. Tens é um clube de que habituas a gostar desde pequenino.
“Vitórias mais saborosas foram contra o Benfica”
Depois quando se é profissional isso é posto de lado.
O fundamental é fazermos bem o nosso trabalho. Aliás, as vitórias mais saborosas que tenho são a ganhar ao Benfica. Jogar com o Arouca e ganhar ao Benfica foi das vitórias mais incríveis que eu tive. Jogar no Rio Ave e ganhar ao Benfica nos oitavos de final da Taça, foi das coisas que mais gozo me deu. O clube do coração não deixa de existir, mas quando estás lá dentro é a lei da selva, é a sobrevivência, nós temos que ganhar e outro tem de perder.
Quais as principais funções de um treinador -adjunto?
Desde logo, és uma espécie de intermediário entre o treinador e os jogadores. O aspeto fundamental é a confiança, porque estás no meio do treinador e dos jogadores. E tens que perceber que nesta ligação o fundamental é a performance da equipa. Em específico, no Lille, faço a tradução do francês para o português e inglês para os jogadores estrangeiros. O que faz com que esteja, por propensão, mais com os jogadores estrangeiros e portugueses. No treino ajudo a operacionalizar, estou nos exercícios, corrijo, intervenho, dou o toque ao treinador sobre qualquer aspeto. Sou responsável por fazer os cortes e seleções do que é a análise da nossa equipa, estou na preparação dos treinos. A nossa equipa técnica prepara o treino do dia a seguir toda junta. Estamos naquilo que são as prioridades para a semana ou para o treino e na preparação do jogo. Basicamente é falar com os jogadores, com o departamento médico, ter uma relação que envolve toda a gente. Tem este lado mais informal e relacional do processo e depois a competência mais específica que é preparar, desenhar o treino, ajustar e adaptar exercícios, olhar para o adversário e criar algum exercício para fazer, fazer vídeos individuais para correção ou melhoria de algumas questões, analisar o jogo da nossa equipa. É esta a minha função como adjunto.
Qual a principal qualidade que um treinador adjunto deve ter?
Pela minha experiência – já estive com cinco treinadores diferentes -, é seres apaixonado, disponível e pró-ativo. Tomares a iniciativa. Se há ali alguma coisa que ninguém está a fazer, fazes. O treinador liga-te às duas da manhã porque precisa de analisar um jogador? Vais descarregar vídeos e vais ver. É uma profissão que não tem horários.